Ao longo da vida de uma pessoa, esta absorve, desde o seu nascimento, uma série de conhecimentos, regras, formas de pensar e agir que a caracteriza e que são chamadas de capitais (algo que não é necessariamente uma riqueza física, mas que é simbólica). Esse capital, inclusive, a diferencia de outras pessoas, mesmo que possuam características em comuns, como morar no mesmo bairro, estudar na mesma escola e ter recursos financeiros equiparados. Da mesma forma, um grupo de pessoas detentoras de um certo capital se diferencia de outro grupo que possuem um capital distinto.
Tais diferenças são valorizadas e aceitas pela sociedade, o que faz com que um grupo detentor de um capital mais avantajado exerça dominância arbitrária sobre os que não possuem um capital semelhante, e gera o que é chamado por Bordieu de habitus, que contribui, por sua vez, para que essa dominância, muitas vezes, não seja percebida, pois os indivíduos acham, por exemplo, que certos comportamentos são corretos. Assim, para o autor, a influência desse grupo favorecido por seu capital simbólico é um tipo de violência simbólica, sútil e naturalizada (sua ideia vai contra a ideia de Weber de que o Estado é a instituição detentora da violência física e simbólica), se manifestando de várias formas, como é o caso do racismo, do machismo, da homofobia, etc., e em vários ambientes, como nas escolas, nas relações de trabalho, dentre outros. Um exemplo de capital simbólico muito valorizado atualmente é o capital cultural, que individualiza os grupos sociais entre si e que diz qual o “valor” ou “status” desses grupos na sociedade e em determinada situação.
Ao longo da história social da humanidade, sempre houve uma situação de dominância de uma classe privilegiada sobre uma outra classe que não possui as mesmas condições políticas, econômicas e culturais (capitais). Para resolver essa diferença de poder entre essas classes, durante séculos, ocorreram inúmeras revoltas sociais (sendo muitas delas violentas) contra uma elite interessada na manutenção de sua posição social. Essa luta por mais direitos é contínua e ocorre até os dias de hoje. Essa obtenção de maior igualdade da classe dominada na sua sociedade, vem sofrendo ultimamente, inclusive no Brasil, uma tendência de não ser mais armada, de forma que esses conflitos de interesses estão sendo disputados no campo jurídico. Isso ocorre devido ao fato de essa classe ter se tornado mais desperta a respeito de seus direitos e perceber que a atual legislação permite que suas demandas possam se concretizar, bem como está ciente que outros ramos do conhecimento social (ciência, arte, por exemplo) acompanha seus interesses de forma que a sua luta por mais garantias tenha mais legitimidade e ter maiores chances de ser reconhecida (é o que se chama do espaço dos possíveis).
Assim, apesar de essas pessoas não terem o hábito de lidar com o direito, pois são na sua maioria, de origem de camadas mais populares, buscam no direito uma solução para seus problemas, tentando obter um direito popular que não está apenas a serviço de uma elite dominante (como criticava Karl Marx) e faz isso, muitas vezes, por causa da morosidade do seu poder Legislativo em atender essas demandas da sociedade, pois é apático. Assim, o meio jurídico vem se tornando não mais um monopólio dos que possuem o conhecimento (capital) de como lidar e interpretar as leis, tornando-o mais sensível às exigências sociais, tendo parte de sua autonomia quebrada ao mesmo tempo que se altera por causa dessas pressões.
Nesse sentido, foi julgado pelo STF a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 54, proposta em 2004, que questionava se o aborto de anencéfalos estaria caracterizada pelos artigos 124, 125 e 126 do código penal (tratam do crime de aborto). Isso foi possível devido aos novos conhecimento que vieram da medicina (espaço dos possíveis) e que confirmam que um feto anencéfalo não é viável, pois poderia falecer durante o período da gestação ou poucos minutos após o nascimento (mesmo se sobrevivesse após o nascimento, o período que permaneceria vivo seria curto). Por isso, fazer com que a mãe tivesse que passar por toda a gestação resultaria em um sofrimento extremo e desnecessário, pois as mudanças na gestação são não apenas físicas, mas psicológicas. É necessário esclarecer que a intensão aqui não é descriminalizar o aborto, visto que isso não seria conseguido, pois o direito não segue todas as pretensões desejadas por um seguimento da sociedade (mesmo porque, o espaço dos possíveis não permitiria isso). O que se desejava é que a interrupção da gestação de um feto anencéfalo não fosse considerado aborto e que essa decisão de interromper a gestação pudesse partir da mãe, se quisesse, mesmo porque essa gestação pode acarretar riscos para a sua saúde. Isso foi importante, pois antes o assunto dependia da decisão de cada juiz e após o julgamento da ADPF se obteve mais segurança jurídica nesse tema.
Basicamente, dois princípios constitucionais foram confrontados: o direito da dignidade humana e o direito à vida. Como nenhum princípio é absoluto, foi usado o princípio da proporcionalidade para resolver a questão na medida que se buscou analisar até que ponto a dignidade humana é considerada em relação à difícil questão de definir quando começa a vida e quem a define (se é a religião, a moral, a lei ou a ciência), além de ter que se considerar até que ponto prevalece o direito à vida (direito humano fundamental de 1ª geração), que é protegido pelo art. 5º da CF.
Nesse contexto, pode-se observar os fenômenos da racionalização do direito, na medida em que a decisão favorável obtida não foi de interesse exclusivo do juiz (que muitas vezes decide baseando-se em informações da ciência, como foi o caso nessa ADPF, e não em suas crenças, o que caracteriza uma neutralidade) nem de um grupo interessado na decisão, mas considerada como uma necessidade da coletividade.
O ministro Marco Aurélio foi o relator da ação que foi julgada oito anos após a sua proposição pela confederação nacional de trabalhadores, que viu que profissionais de saúde poderiam ser condenados por terem interrompido uma gestação de anencéfalo, pois os tribunais julgavam a questão de formas diversas. Ao todo, onze ministros do STF participaram e a ação teve oito votos a favor e dois contra. Por fim, um outro aspecto a ser mencionado é a historicização do direito, no sentido de que a dignidade humana e o direito à vida, previstos na CF na época de sua promulgação, foram interpretados e empregados segundo a realidade social em que se encontrava o país.
A decisão do STF permite agora que a mulher possa decidir em prosseguir ou não com a gestação no caso de um feto anencéfalo e tal decisão permite que o Brasil esteja no caminho correto em se tornar cada vez mais em um estado democrático de direito, fazendo com que a constituição federal não seja um mero pedaço de papel (como afirmou Ferdinand Lassale).
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