Bourdieu desenvolve sua teoria em meio a questões complexas, impulsionadas pela universalização de direitos no período posterior à Segunda Guerra Mundial, no qual a mera instrumentalização e formalização do direito passou a entrar em conflito com o evidente desenvolvimento de instituições políticas e normas fundamentais com cunho amplamente social. O autor analisa o desenvolvimento do direito posteriormente às grandes teorias do século anterior e movimentações históricas promovidas na primeira metade do século XX. Dessa forma, Bourdieu desenvolve sua tese com visão panorâmica das dificuldades e embates desenvolvidos na sociedade capitalista e a instrumentalização do direito por parte desta. A ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54), julgada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal, não atuou em via contrária ao que prevê o código penal. Portanto, o aborto permanece tipificado pela lei penal como uma prática criminosa sob a qual o estado detém o poder de rechaço. Todavia, a decisão promulgada pela suprema corte expõe o embate no que Bourdieu denomina como ‘’espaço dos possíveis’’. Ficou decidido por 8 votos a 2 que a interrupção terapêutica induzida da gravidez de um feto anencéfalo não atinge o que o Código Penal prevê, e, portanto, se trata de uma prática legal. O caso obteve intensa repercussão na sociedade brasileira, instituições detentoras de grande capital social como igrejas católicas, evangélicas e instituições espíritas utilizaram de seu poder simbólico para buscarem criminalizar a prática legalizada pela ADPF, procurando a sobreposição do direito à curta vida do natimorto em detrimento dos direitos fundamentais das mulheres, que, citando o Min. Barroso, ‘’não são útero a serviço da sociedade’’, e, portanto, devem ter sua liberdade de escolha assegurada. Bourdieu busca engendrar a lógica positiva da ciência com a normativa da moral. Sob tal perspectiva, conforme o voto do relator “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. (…) o feto anencéfalo, mesmo biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida”, se denota a clara conexão entre a lógica científica da impossibilidade de vida do anencéfalo com valores sociais. Portanto, se torna claro que a discussão promovida pela ADPF 54 se trata de um embate de interesses entre classes sociais através do campo jurídico. Através de valores reacionários, instituições historicamente dominantes buscam impor seus interesses e dominar a regulação do campo social. Todavia, conforme afirma a decisão dos ministros, o direito deve adaptar-se constantemente às transformações sociais e abrigar o que a contemporaneidade atesta, que no caso é a superação de valores religiosos seculares, que buscam legitimar a prevalência dos direitos do natimorto em detrimento dos direitos fundamentais da mulher, ser humano capaz e com vida possível. A decisão promulgada pela corte abriu espaço, posteriormente a discussões entre entidades heterogêneas, para a aplicação de uma jurisprudência para casos semelhantes pautada em valores abundantemente racionais, com uma discussão que acopla todos os campos que compõem a vida social, fatos científicos e participação de entidades sociais.
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