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sábado, 31 de agosto de 2019

Para além do pensamento latifundiário excludente
No artigo O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone (2016), a socióloga portuguesa Sara Araújo discorre sobre o conceito de Epistemologias do Sul do também português Boaventura de Sousa Santos. Na era dos Impérios Coloniais Europeus, o Velho e o Novo Mundo eram demarcados por linhas cartográficas. Essa divisão ainda permanece no mundo contemporâneo como delimitadora das relações políticas e culturais entre as antigas metrópoles e seus territórios coloniais. Em que ocorre o que a autora denomina de razão metonímica, ou seja, a exclusão dos conhecimentos produzidos nas antigas colônias em primazia ao produzido em suas antigas metrópoles (pensamento abissal). A distinção entre sociedades desenvolvidas (antigas metrópoles) e subdesenvolvidas (antigas colônias), ocasiona dicotomias que Santos (2007) explica dentro do paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais. Em que a “regulação/emancipação” se aplica apenas às sociedades desenvolvidas, enquanto que nas subdesenvolvidas se aplica a dicotomia “apropriação/violência”.
Tanto Araújo como Santos, estabelecem as ciências do conhecimento e o direito moderno como representantes exemplificativos desse pensamento abissal. O direito oficial dos Estados e o Direito Internacional são eurocêntricos e reproduzem as exclusões abissais. Ao analisar o Agravo de Instrumento (AI) nº 70003434388, em que, em favor dos integrantes do Movimento Sem-Terra, se indeferiu a liminar reintegratória de posse, podemos observar como no Brasil ainda reproduzimos o contexto do colonialismo-imperialismo em vez de interrompê-lo. No território brasileiro, a opressão e conflito de terra existe desde 1.500. Os “invasores” europeus da época foram vitoriosos na luta pela posse da terra contra os indígenas, e seus descendentes (a classe rural detentora de terras), hoje, sentem-se agredidos pelos atuais “invasores” (integrantes de movimentos sociais).
Em seu artigo, Araújo (2016) estabelece que “os investimentos que ocorrem a partir dos anos 1.980 na promoção do Estado de direito não se traduziram em concretizações proporcionais. (...) Uma vez que o sistema de justiça não responde a reformas e ações de capacitação impostas de cima para baixo, buscam-se agora soluções através da justiça informal para promover a estabilização do Estado de Direito”. Essas soluções através da justiça informal, no caso brasileiro, no que tange casos como o AI nº 70003434388, se caracterizam pelas invasões e pedidos na justiça pelos movimentos sociais de desapropriação de terras que não exerçam sua função social ou estejam improdutivas. Em seu voto, o desembargador Mário José Gomes Pereira justifica sua decisão de negar provimento ao AI em anuência com as ideias de Araújo: “O possuidor latifundiário que descumpre o princípio da destinação social da propriedade desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de justiça das populações pobres do campo”.
 O latifúndio é claramente uma resultante do imperialismo moderno. E os movimentos sociais com suas ações buscam ser acolhidos pelo sistema de leis positivadas que excluem as minorias. Essa exclusão das minorias, Araújo descreve dentro do conceito de razão metonímica e da monocultura do universal e do global, em que “tudo o que é local ou particular é invisibilizado pela lógica da escala global”. A base do argumento favorável à reintegração de posse, representada pelo desembargador Luís Augusto Coelho Braga, é que cabe à União o início do processo legal de desapropriação da terra (Art. 184 da CF; e Art. 2º, § 1º da Lei nº 8.629). O que Araújo estabelece como a monocultura da naturalização das diferenças, que “consiste na distribuição das populações por categorias que identificam diferença com desigualdade e permitiu, pois, legitimar a dominação e a exploração”. O sistema positivado do direito inferioriza as minorias pela formalidade em excesso, e as invasões e ocupações do MST visam quebrar essa formalidade.
Araújo e Santos defendem a ideia do pluralismo jurídico como meio de transpor as exclusões abissais estabelecidas pela ortodoxia jurídica capitalista consequente do imperialismo-colonialismo. O AI nº 70003434388 é um exemplo dessa transposição ao contribuir para o conhecimento e a valorização da diversidade que é proposta pelo pluralismo jurídico. A prevalência dos direitos fundamentais (função social da terra) em detrimento de direitos puramente patrimoniais (posse da terra) quebra com a dicotomia “apropriação/violência” típica dos antigas colônias europeias e caminha para a “regulação/emancipação” que o exercício do pluralismo jurídico oferece.


Referências Bibliográficas:
ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos,
desafiar o cânone. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.º 43, set/dez 2016, p. 88-115.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov 2007.  

Raquel Rinaldi Russo – 1º ano Direito Matutino

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