Para além do
pensamento latifundiário excludente
No
artigo O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos
conceitos, desafiar o cânone (2016), a socióloga portuguesa Sara Araújo
discorre sobre o conceito de Epistemologias do Sul do também português
Boaventura de Sousa Santos. Na era dos Impérios Coloniais Europeus, o Velho e o
Novo Mundo eram demarcados por linhas cartográficas. Essa divisão ainda permanece
no mundo contemporâneo como delimitadora das relações políticas e culturais entre
as antigas metrópoles e seus territórios coloniais. Em que ocorre o que a
autora denomina de razão metonímica, ou seja, a exclusão dos conhecimentos
produzidos nas antigas colônias em primazia ao produzido em suas antigas metrópoles
(pensamento abissal). A distinção entre sociedades desenvolvidas (antigas
metrópoles) e subdesenvolvidas (antigas colônias), ocasiona dicotomias que
Santos (2007) explica dentro do paradigma fundado na tensão entre a regulação e
a emancipação sociais. Em que a “regulação/emancipação” se aplica apenas às
sociedades desenvolvidas, enquanto que nas subdesenvolvidas se aplica a
dicotomia “apropriação/violência”.
Tanto
Araújo como Santos, estabelecem as ciências do conhecimento e o direito moderno
como representantes exemplificativos desse pensamento abissal. O direito oficial
dos Estados e o Direito Internacional são eurocêntricos e reproduzem as exclusões
abissais. Ao analisar o Agravo de Instrumento (AI) nº 70003434388, em que, em
favor dos integrantes do Movimento Sem-Terra, se indeferiu a liminar
reintegratória de posse, podemos observar como no Brasil ainda reproduzimos o
contexto do colonialismo-imperialismo em vez de interrompê-lo. No território
brasileiro, a opressão e conflito de terra existe desde 1.500. Os “invasores” europeus
da época foram vitoriosos na luta pela posse da terra contra os indígenas, e
seus descendentes (a classe rural detentora de terras), hoje, sentem-se
agredidos pelos atuais “invasores” (integrantes de movimentos sociais).
Em
seu artigo, Araújo (2016) estabelece que “os investimentos que ocorrem a partir
dos anos 1.980 na promoção do Estado de direito não se traduziram em
concretizações proporcionais. (...) Uma vez que o sistema de justiça não responde a reformas e ações de
capacitação impostas de cima para baixo, buscam-se agora soluções através da
justiça informal para promover a estabilização do Estado de Direito”. Essas
soluções através da justiça informal, no caso brasileiro, no que tange casos
como o AI nº 70003434388, se caracterizam pelas invasões e pedidos na justiça pelos
movimentos sociais de desapropriação de terras que não exerçam sua função
social ou estejam improdutivas. Em seu voto, o desembargador Mário José Gomes
Pereira justifica sua decisão de negar provimento ao AI em anuência com as ideias de Araújo: “O
possuidor latifundiário que descumpre o princípio da destinação social da
propriedade desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de justiça das
populações pobres do campo”.
O latifúndio é claramente uma resultante do
imperialismo moderno. E os movimentos sociais com suas ações buscam ser
acolhidos pelo sistema de leis positivadas que excluem as minorias. Essa
exclusão das minorias, Araújo descreve dentro do conceito de razão metonímica e
da monocultura do universal e do global, em que “tudo o que é local ou particular
é invisibilizado pela lógica da escala global”. A base do argumento favorável à
reintegração de posse, representada pelo desembargador Luís Augusto Coelho Braga,
é que cabe à União o início do processo legal de desapropriação da terra (Art.
184 da CF; e Art. 2º, § 1º da Lei nº 8.629). O que Araújo estabelece como a
monocultura da naturalização das diferenças, que “consiste na distribuição das
populações por categorias que identificam diferença com desigualdade e
permitiu, pois, legitimar a dominação e a exploração”. O sistema positivado do
direito inferioriza as minorias pela formalidade em excesso, e as invasões e
ocupações do MST visam quebrar essa formalidade.
Araújo
e Santos defendem a ideia do pluralismo jurídico como meio de transpor as
exclusões abissais estabelecidas pela ortodoxia jurídica capitalista
consequente do imperialismo-colonialismo. O AI nº 70003434388 é um exemplo dessa
transposição ao contribuir para o conhecimento e a valorização da diversidade que
é proposta pelo pluralismo jurídico. A prevalência dos direitos fundamentais (função
social da terra) em detrimento de direitos puramente patrimoniais (posse da
terra) quebra com a dicotomia “apropriação/violência” típica dos antigas
colônias europeias e caminha para a “regulação/emancipação” que o exercício do
pluralismo jurídico oferece.
Referências
Bibliográficas:
ARAÚJO,
Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos
conceitos,
desafiar
o cânone.
Sociologias, Porto Alegre, ano 18, n.º 43, set/dez 2016, p. 88-115.
SANTOS,
Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 79, p. 71-94, nov 2007.
Raquel Rinaldi Russo – 1º ano
Direito Matutino
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