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sábado, 31 de agosto de 2019

Análises e Comentários do AG 70003434388 à Luz de Sara Araújo.


    Em Novembro de 2001 chegou ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, da décima nona câmara cível, o agravo de instrumento número 70003434388, interposto por Plínio Formiguieri e Valéria Dreyer Formighieri contra a decisão judicial posterior, a reintegração de posse indeferida a liminar reintegratória pautada no art. 928 do Código de Processo Civil, direcionada a Loivo Dal Agnoll e outros.

    Os agravantes, Plínio e Valéria, alegaram ter tido sua propriedade invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em Outubro de tal ano. Sob as alegações de não cumprimento da função social da propriedade e dentre outros argumentos, os proprietários apresentaram diversas documentações a fim de provar a produtividade da Fazenda Primavera.
Tiveram como votos os dos desembargadores: O relator do agravo, Carlos Rafael dos Santos Júnior, juntamente com o revisor, Mário José Gomes Pereira Luís Augusto Coelho Braga. Por maioria, consentiram em negar provimento ao agravo.

    O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ou como presente no texto do agravo, Movimento dos Trabalhadores sem Terra) é um movimento de ativismo político e social brasileiro que busca Reforma Agrária através da democratização da terra e agricultura em perspectivas além das ortodoxamente capitalistas. Fundado em 1984 pelo economista, ativista e escritor brasileiro João Pedro Stédile, o movimento hoje tem alcance tanto nacional quanto internacional.  

A marginalização e deturpação de seus objetivos são constantemente reafirmadas, mas é importante, antes de tudo, de entender o caso e as arguições realizadas no voto contrário, diretamente da fonte conhecermos quais os ideais, e a importância do trabalho dessas pessoas assentadas. Abaixo, o trecho exposto na página oficial em relação à suas produções:

Uma das nossas principais contribuições para a sociedade brasileira é cumprir nosso compromisso em produzir alimentos saudáveis para o povo brasileiro. Fruto da organização de cooperativas, associações e agroindústrias nos assentamentos, procuramos desenvolver a cooperação agrícola como um ato concreto de ajuda mútua que fortaleça a solidariedade e potencialize as condições de produção das famílias assentadas, e que também melhorem a renda e as condições do trabalho no campo.
 (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Disponível em: <http://www.mst.org.br/nossa-producao/>. Acesso em 31/08/2019).

    Apesar das grandes proporções da organização e todo seu caráter de luta por ideais sociais, o movimento enfrenta desde sempre muitas barreiras, e embates jurídicos, uma vez que a maioria das ocupações é por meio de invasão de propriedades rurais privadas como o agravo de instrumento aqui presente.

    Com isso, após toda essa contextualização, é possível iniciar uma reflexão sobre o agravo à luz do pensamento da socióloga Sara Araújo. Em um país como o Brasil, onde há riqueza em recursos naturais, temos a ilusão de que quem nos abastece são grandes indústrias do agronegócio, mas empiricamente não é assim que funciona, uma vez que um elevado percentual desses produtos de primeira linha é para exportação. Dessa forma, o que ingerimos é em sua grande maioria produto de agricultura familiar, proveniente de assentamentos.

   Mas como podemos, mesmo diante tal fato, continuar a marginalizar ou simplesmente ignorar a importância desse tipo de produção? Sara Araújo retrata bem isso em sua obra acerca do primado do direito e as exclusões abissais, onde fala sobre a “produção da inexistência”, que é exatamente o que ocorre no caso citado acima, aquilo que é “do lado de lá” (Sul) torna-se invisível, e passa a ser visto como atrasado, pois o pensamento moderno impõe fronteiras, “linhas abissais”, que dividem e hierarquizam culturas, ordenamentos e até mesmo interpretações, sendo as Epistemologias do Norte “superiores”, “desenvolvidas”, por estar dentro das expectativas capitalistas.

    Dessa forma, em relação à agricultura familiar, já mencionada anteriormente, por exemplo, se diferencia dos moldes extremamente modernos e robotizados. Com isso adentramos na análise feita por Sara acerca da prevalência da razão metonímica, onde cinco formas de monocultura são alimentadas.

     Esse tipo de agricultura não se enquadra em tais “classificações”, passando assim a ser tida como improdutiva e inviável, com técnicas primitivas e arcaicas, pensamento esse cultivado pelas dicotomias um tanto quanto “positivistas”, com ideal evolucionista, gerando desigualdades, fazendo com que haja de certo modo uma legitimação de explorações e dominações, além do chamado pela autora de “desperdício de experiência social”.

    Portanto, como feito no agravo, ao entrarem com argumentos jurídicos pautados em normas constitucionais como função social da propriedade, bem como direito a propriedade privada, deve-se realmente investigar, pois uma decisão deve levar o máximo de aspectos plausíveis em consideração, e dar um veredito que não se paute nas velhas exegeses, e nem embasado e uma lógica capitalista excludente como a que vivemos imerso na atualidade.

    Eis a importância/influência do Direito no prisma das Epistemologias. Não esse Direito eurocêntrico da contemporaneidade, marcado pela “monocultura Jurídica”, abordada por Sara, que tem sido instrumento para a ampliação capitalista, perpetuação de colonialismos (jurídicos, sociais, do saber, dentre outros) e de exclusões abissais, como algumas das já mencionadas acima.

     Mas é o Direito também a ferramenta principal para o fortalecimento de uma possível Epistemologia do Sul, através das ponderações e hermenêuticas necessárias, e levando em considerações aspectos como os suscitados pelo revisor do agravo, sobre não poder fazer com que o direito unicamente patrimonial prevaleça em detrimento de direitos básicos e fundamentais de inúmeras famílias.

   Dessa maneira, tendo o provimento negado no agravo, e os argumentos utilizados tanto contra como a favor, vemos que há na justiça lacunas, mas também tentativas de mitigar esses déficits através de decisões que buscam harmonizar legislação e necessidades sociais.  Para que seja mais efetivo, acredito que como dito por Sara Araújo, devemos “des-pensar” a “eurocentrização jurídica”, cultivar a ecologia de direitos e justiças, ecologias essas que sejam capazes de enfrentar as cinco monoculturas, bem como explorar a “Interlegalidade” tratada por Boaventura de Souza Santos, ampliando o leque de fontes interpretativas e podendo haver concepções jurídicas plurais.


Letícia E. de Matos 
Direito Matutino - 1° ano. 

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