Em Novembro de 2001 chegou ao Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, da décima nona câmara cível, o agravo de
instrumento número 70003434388, interposto por Plínio Formiguieri e Valéria
Dreyer Formighieri contra a decisão judicial posterior, a reintegração de posse
indeferida a liminar reintegratória pautada no art. 928 do Código de Processo
Civil, direcionada a Loivo Dal Agnoll e outros.
Os agravantes, Plínio e Valéria, alegaram ter tido
sua propriedade invadida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra em Outubro de tal ano. Sob as alegações de não cumprimento da função
social da propriedade e dentre outros argumentos, os proprietários apresentaram
diversas documentações a fim de provar a produtividade da Fazenda Primavera.
Tiveram como votos os dos desembargadores: O relator
do agravo, Carlos Rafael dos Santos Júnior, juntamente com o revisor, Mário
José Gomes Pereira Luís Augusto Coelho Braga. Por maioria, consentiram em negar
provimento ao agravo.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
ou como presente no texto do agravo, Movimento dos Trabalhadores sem Terra) é
um movimento de ativismo político e social brasileiro que busca Reforma Agrária
através da democratização da terra e agricultura em perspectivas além das ortodoxamente
capitalistas. Fundado em 1984 pelo economista, ativista e escritor brasileiro
João Pedro Stédile, o movimento hoje tem alcance tanto nacional quanto
internacional.
A marginalização e deturpação de seus objetivos são
constantemente reafirmadas, mas é importante, antes de tudo, de entender o caso
e as arguições realizadas no voto contrário, diretamente da fonte conhecermos
quais os ideais, e a importância do trabalho dessas pessoas assentadas. Abaixo,
o trecho exposto na página oficial em relação à suas produções:
Uma das nossas principais
contribuições para a sociedade brasileira é cumprir nosso compromisso em produzir alimentos saudáveis para o povo
brasileiro. Fruto da organização de cooperativas, associações e agroindústrias
nos assentamentos, procuramos desenvolver a cooperação agrícola como um ato
concreto de ajuda mútua que fortaleça a solidariedade e potencialize as
condições de produção das famílias assentadas, e que também melhorem a renda e
as condições do trabalho no campo.
(MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM
TERRA. Disponível em: <http://www.mst.org.br/nossa-producao/>.
Acesso em 31/08/2019).
Apesar das grandes proporções da organização e todo
seu caráter de luta por ideais sociais, o movimento enfrenta desde sempre muitas
barreiras, e embates jurídicos, uma vez que a maioria das ocupações é por meio
de invasão de propriedades rurais privadas como o agravo de instrumento aqui
presente.
Com isso, após toda essa contextualização, é
possível iniciar uma reflexão sobre o agravo à luz do pensamento da socióloga
Sara Araújo. Em um país como o Brasil, onde há riqueza em recursos naturais,
temos a ilusão de que quem nos abastece são grandes indústrias do agronegócio,
mas empiricamente não é assim que funciona, uma vez que um elevado percentual desses
produtos de primeira linha é para exportação. Dessa forma, o que ingerimos é em
sua grande maioria produto de agricultura familiar, proveniente de
assentamentos.
Mas como podemos, mesmo diante tal fato, continuar a
marginalizar ou simplesmente ignorar a importância desse tipo de produção? Sara
Araújo retrata bem isso em sua obra acerca do primado do direito e as exclusões
abissais, onde fala sobre a “produção da inexistência”, que é exatamente o que
ocorre no caso citado acima, aquilo que é “do lado de lá” (Sul) torna-se
invisível, e passa a ser visto como atrasado, pois o pensamento moderno impõe fronteiras,
“linhas abissais”, que dividem e hierarquizam culturas, ordenamentos e até
mesmo interpretações, sendo as Epistemologias do Norte “superiores”, “desenvolvidas”,
por estar dentro das expectativas capitalistas.
Dessa forma, em relação à agricultura familiar, já
mencionada anteriormente, por exemplo, se diferencia dos moldes extremamente
modernos e robotizados. Com isso adentramos na análise feita por Sara acerca da
prevalência da razão metonímica, onde cinco formas de monocultura são
alimentadas.
Esse tipo de
agricultura não se enquadra em tais “classificações”, passando assim a ser tida
como improdutiva e inviável, com técnicas primitivas e arcaicas, pensamento
esse cultivado pelas dicotomias um tanto quanto “positivistas”, com ideal
evolucionista, gerando desigualdades, fazendo com que haja de certo modo uma
legitimação de explorações e dominações, além do chamado pela autora de “desperdício
de experiência social”.
Portanto, como feito no agravo, ao entrarem com
argumentos jurídicos pautados em normas constitucionais como função social da
propriedade, bem como direito a propriedade privada, deve-se realmente
investigar, pois uma decisão deve levar o máximo de aspectos plausíveis em
consideração, e dar um veredito que não se paute nas velhas exegeses, e nem embasado
e uma lógica capitalista excludente como a que vivemos imerso na atualidade.
Eis a importância/influência do Direito no prisma
das Epistemologias. Não esse Direito eurocêntrico da contemporaneidade, marcado
pela “monocultura Jurídica”, abordada por Sara, que tem sido instrumento para a
ampliação capitalista, perpetuação de colonialismos (jurídicos, sociais, do
saber, dentre outros) e de exclusões abissais, como algumas das já mencionadas acima.
Mas é o Direito também a ferramenta principal
para o fortalecimento de uma possível Epistemologia do Sul, através das
ponderações e hermenêuticas necessárias, e levando em considerações aspectos como
os suscitados pelo revisor do agravo, sobre não poder fazer com que o direito unicamente
patrimonial prevaleça em detrimento de direitos básicos e fundamentais de inúmeras
famílias.
Dessa maneira, tendo o provimento negado no agravo, e
os argumentos utilizados tanto contra como a favor, vemos que há na justiça
lacunas, mas também tentativas de mitigar esses déficits através de decisões
que buscam harmonizar legislação e necessidades sociais. Para que seja mais efetivo, acredito que como
dito por Sara Araújo, devemos “des-pensar” a “eurocentrização jurídica”,
cultivar a ecologia de direitos e justiças, ecologias essas que sejam capazes
de enfrentar as cinco monoculturas, bem como explorar a “Interlegalidade” tratada
por Boaventura de Souza Santos, ampliando o leque de fontes interpretativas e
podendo haver concepções jurídicas plurais.
Letícia E. de Matos
Direito Matutino - 1° ano.
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