A descriminalização do aborto de
anencéfalos, apesar de já possuir respaldo jurisprudencial, ainda gera muita
discussão entre leigos e até especialistas no assunto, seja tratado no âmbito
científico ou jurídico. O grande problema se revela na nossa Constituição, a
qual não trata especificamente desses casos, abrindo margem então para
interpretações divergentes. Como é observado, há uma parcela considerável da
população que repudia o aborto por motivos religiosos e morais, embora não
conheça as especificidades do nosso código jurídico a respeito desse assunto.
Não obstante, mesmo aqueles que detêm de grande conhecimento jurídico e
biológico não entram em consenso quando se é colocado em pauta tal questão.
Isso se deve aos diferentes recursos utilizados e considerados na formulação
das suas opiniões, possibilitando assim discursos diametralmente opostos embora
possuam matriz comum. À luz de Bourdieu, tal fato ocorre pela existência de uma
lógica duplamente determinada, a qual traz alta carga valorativa em todos os
argumentos trazidos ao debate, justamente por possuírem respaldo legal. A Constituição
é formada por numerosos artigos objetivos, os quais estabilizam limites às suas
interpretações, todavia alguns são caracterizados como subjetivos, abrindo margem
para a adequação de diferentes idéias. Tal fato caracteriza a hermenêutica
proporcionada pelo direito, que é responsável pela existência dessas
inconstâncias, gerando em alguns casos até mesmo um paradoxo, como é visto
nesse em questão.
Tendo como base a análise de Bourdieu, o
Direito atua como “molde”, tendo esse modelo um caráter muito especial. Para
melhor compreensão, utilizar-me-ei de uma analogia: Na época Colonial do
Brasil, especificamente no período da mineração, existiam as Casas de Fundição
as quais eram responsáveis pela purificação, cunho e cobrança de impostos do
ouro extraídos. Dessa forma era feita a legalização do ouro, somente era válido
aquele que estivesse em barra, com o selo das casas de fundição e, por
conseguinte, “quintado” (nome advindo do pagamento do “quinto”, imposto cobrado
na época). É justamente essa a idéia presente no estudo de Bourdieu, o qual
afirma que para as idéias adquirirem valor legal e axiológico, além de
corresponderem com a moral de seu momento, devem atuar mediante o aparato
normativo, ou seja, devem usar dos recursos promovidos e permitidos pela
própria lei, entrando dessa forma nos “moldes prepostos”. Ainda utilizando
dessa analogia, muitas vezes é necessário tirar parte das idéias “brutas”,
assim como é retirado o quinto, para que essas consigam encaixar-se nos ditames
da nossa legislação. Desse modo, levar o debate para o ambiente jurídico traz
força, valoração e peso para aquilo que antes não detinha desse poder, há assim
a transformação de idéias em argumentos, a fuga da individualidade para a
legalidade, reconhecimento e aceitabilidade do campo jurídico e, por
conseqüência, dos demais campos.
Á guisa de conclusão, o estudioso utilizado
para a compreensão do assunto se revela muito complexo e relevante, visto que a
partir dele que consegue se chegar ao entendimento do fenômeno ocasionado pelo
debate acerca do abordo de anencéfalos. Tanto a argumentação pró-aborto de
anencéfalos, quanto contra tal ato possuem grande consistência por estarem
efetivadas no “espaço dos possíveis” (como o autor se refere ao campo jurídico).
Sendo assim, o que deve ser levado em consideração nesta discussão acerca da
decisão do Supremo Tribunal Federal não é a validade do discurso, mas sim a
efetividade, há de distanciar-se da normatividade pura para a análise e
compreensão da eficácia, da real necessidade tida principalmente pelas mulheres
que sofrem por essa indecisão. Só dessa forma poderemos chegar à conformidade,
possibilitando assim a melhora e o desenvolvimento tão necessários nessa área escandalosa.
Iago Gasparino Fernandes
Direito Matutino XXXV
Nenhum comentário:
Postar um comentário