Há pouco mais de um ano, tomou os noticiários uma notícia inesperada: No cumprimento de um mandado de prisão, a Polícia Federal foi recebida por tiros de fuzil e granadas. Contudo a surpresa maior não foi vermos a instituição mantenedora da ordem e justiça “reprimida” por fazer o seu dever, mas sim a resposta dos oficiais à calorosa recepção: O agressor - homem, branco e rico - foi tratado com cuidado, cortesia e urbanidade, quase como se fosse um convidado. Cenário extremamente oposto à realidade presente nas periferias: Em 2018, um homem - negro, pobre e morador de favela - que estava na rua esperando sua família com um guarda-chuva preto, foi alvejado pela PM, sem qualquer abordagem, por terem confundido o acessório com um Fuzil.
Embora recorrentes, as gritantes diferenças de tratamento pré-estabelecidas pela classe ou cor dos envolvidos, que vão muito além do meio policial, não são devidamente abordadas e discutidas, não por acaso. Muitas vezes são tidas como fatos isolados, sem relação com um cenário maior, que nas palavras de Charles Wright Mills seriam definidas como “perturbações” - problemas dentro da esfera privada e individual - e “questões” – relativos à esfera pública e ao coletivo, respectivamente. Narrativa essa fruto de uma construção histórica de preconceito e segregação social e que visa desviar o senso analítico da sociedade e perpetuar o status quo, assegurando os privilégios de um grupo ou da ideia que ele representa. As notícias que poderiam representar um abalo na estrutura, ainda que mínimo, caso permanecessem em evidência por tempo suficiente, cedem lugar a outras manchetes, sem muito esmero, em uma sincronia espantosa das mídias corporativas. Enquanto algumas reportagens são comprimidas em poucos minutos ou segundos, sem aprofundamento, para se encaixarem nos padrões do veículo, outras, preciosamente selecionadas, são cortadas, amassadas, digeridas e servidas, constante e reiteradamente, passando a impressão de estarmos na geração da informação. Esse “excesso de informação” característico da nossa sociedade, domina a atenção das pessoas, esmagando suas capacidades de assimilá-la, como destacado por Mills. A “quantidade” é estrategicamente utilizada pelos grupos dominantes para condicionar a postura dos indivíduos - aquilo que devem pensar/falar, quem pode pensar/falar, dizendo o que é notícia ou não, aquilo que deve ser repudiado ou nem tanto, para onde olhar -, utilizando-se da acomodação, conforto e indiferença cognitiva resultantes para podar a capacidade de analisarem criticamente a realidade circundante com “qualidade” e com isso, contendo e apagando cuidadosamente a inflamação da indignação, como uma vela dentro de um vidro fechado, dando lugar a um silêncio ensurdecedor.
Verifica-se, desse modo, que o silêncio tocado na marcha contemporânea não reflete a ausência de voz ou irresignação dos oprimidos pelo sistema, mas sim a falta de um local em que suas vozes sejam reverberadas e ouvidas: Um vácuo de indiferença social. Ao invés de considerar os subalternos como silenciosos, seria mais preciso vê-los como silenciados, como assertivamente exposto por Grada Kilomba, em sua obra “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”, na qual discorre sobre a segregação racial no meio acadêmico. Toda uma estrutura social edificada sobre pilares brancos e ricos, onde os outros são peças insignificantes.
Diante disso, é crucial questionar os moldes estabelecidos, desenvolver a imaginação sociológica para perceber e compreender o que está se passa no meio e com nós mesmos bem como, entendendo que da mesma forma que somos condicionados podemos contribuir para o condicionamento dessa sociedade, retomar nossa capacidade de nos revoltarmos e pautarmos mudanças estruturais, ainda que pontuais, para superação do racismo e da aporofobia e, com isso, a construção de um lugar mais humano e de todos.
RUTH F. O. SILVA
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