DE DECISÃO EM DECISÃO, O PAÍS FICA MAIS DEMOCRÁTICO (EM TEORIA)
O tema em questão é a análise baseada no pensamento de Pierre Bourdieu, Antoine Garapon, Michael McCann, Sara Araújo e Achille Mbembe referente à Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.987, que busca o reconhecimento de injúria racial como racismo, proposta ao Supremo Tribunal Federal (STF), por parte do Cidadania, para ser julgada com o Habeas Corpus - HC 154.248 Distrito Federal (2020). O conflito expresso no litígio é aquele entre as pessoas que acreditam que racismo e injúria são delitos distintos e, por isso, devem ter penas diferentes e aquelas outras que acham que não é possível ofender um indivíduo com base em sua raça, etnia, cor, etc, sem ofender uma coletividade inteira ao mesmo tempo, em outras palavras, advogam que toda injúria é crime de racismo pois um ataque racista é um ataque contra toda população preta e parda, e não em face de uma única pessoa apenas. Óbvio, já que foi ele o responsável pelo pedido de reconhecimento, porém necessário dizer que o partido supracitado faz parte do segundo grupo mencionado.
Em primeiro lugar, segundo Bourdieu e seu “espaço dos possíveis”, a ADI pode ter uma certa viabilidade pois apresenta base na literatura científica do direito, quer dizer, um estudo empírico jurisprudencial de Marta Machado, Márcia Lima e Natália Neris comprova que ofensas racistas são dirigidas a indivíduos, que se sentem discriminados por pertencerem a uma minoria racial. Por outro lado, se a Corte julgar favoravelmente ao requerente, tal decisão será historicamente relevante porque representará mais um passo em direção à concretização do Princípio da Igualdade (assegurado pela Carta Política) que é um excelente mecanismo de mitigação das desigualdades provenientes dos 500 anos de escravidão pelos quais o Brasil passou. Com certeza poderá ser dito que o Tribunal deixou de lado diferenças políticas e ideológicas para confirmar seu compromisso com o Estado Democrático de Direito que, conclamado pela Constituinte de 1987, tem a obrigação de materializar todos os direitos previstos na Constituição para todos os cidadãos e estrangeiros residentes no País.
A posteriori, Garapon fala sobre “ativismo judicial”, o que não ocorre no presente caso, já que o que está em jogo aqui é a busca de direito por um grupo social, nesta situação, a coletividade negra. Esta conjuntura representa um aprofundamento da democracia pois se o pedido for deferido pelos juízes e pelas juízas não será apenas uma conquista da comunidade preta, mas sim de todo a sociedade, pois quando uma pessoa é racista, existe uma linha tênue para ela cruzar para ser preconceituosa contra outras minorias, como mulheres, população LGBTQIAP+ e povos originários, em outros termos, quando protege-se uma minoria, protege-se todas as minorias. McCann falará tópicos neste mesmo sentido, como que a população negra mobilizou o direito para ter seus direitos assegurados e que com uma decisão favorável, não será mais comum ter que presenciar “piadas” racistas no dia a dia, já que a cultura social geral foi transformada. É o que se espera.
Araújo trata das expressões da monocultura do saber e de uma ecologia de saberes. Nesse sentido, a epistemologia do Norte é um caráter da modernidade eurocêntrica, assim como o direito; a supremacia do direito dentro da coletividade civilizada garante balizas a que as pessoas são expostas. A título de ilustração, se o Supremo decidir de forma contrária ao pedido expresso na petição ele estará confirmando a lógica imperialista do capitalismo que usou a raça de milhões de africanos e asiáticos para os vender em mercados de escravos na América (a figura da “não-pessoa”, uma vez personificada pelo escravo, no século XXI assume o semblante do cidadão periférico). Mbembe, de certo modo, dialoga com esta mesma ideia, ou melhor, a desumanização, assim como o alterocídio, estavam e estão, infelizmente, presentes no fenômeno da objetificação da pessoa negra. Por fim, é fulcral explicitar a natureza colonialista da não impugnação, pelo STF, da diferenciação ilógica, e que só chancela as formas mais vis e desprezíveis de segregação, dos tipos penais da injúria e do racismo.
Mediante o exposto, a procura por direitos, já assegurados a certos grupos sociais, por coletividades marginalizadas é um acontecimento que deve ser realizado por países que se dizem democráticos. As chagas da escravatura ainda estão abertas no Brasil do segundo milênio e mobilizar o Poder Judiciário para que este garanta disposições constitucionais é de extrema importância. Quando a Constituição diz que todos são iguais perante a lei, ela não só repete uma tendência constitucional surgida há pelo menos 200 anos na Europa Ocidental, mas também viabiliza um meio para que todos aqueles que se sintam violados possam recorrer à ajuda dos tribunais. As ideias de Araújo podem ser observadas na frase dita pela atriz ganhadora do Oscar Viola Davis da abolicionista e ativista americana Harriet Tubman quando aquela ganhou o Emmy de Melhor Atriz em Série Dramática: “Na minha mente, eu vejo uma linha. E depois daquela linha eu vejo campos verdes e flores adoráveis e lindas mulheres brancas com os braços esticados para mim sobre a linha, mas eu não consigo passar daquela linha de jeito algum.”. O Supremo deve equiparar a injúria racial ao racismo. Só assim poder-se-á atravessar a linha de Tubman.
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