“Inegável que a injúria racial impõe, baseado na raça, tratamento diferenciado quanto ao igual respeito à dignidade dos indivíduos. O reconhecimento como conduta criminosa nada mais significa que a sua prática tornaria a discriminação sistemática, portanto, uma forma de realizar o racismo” (MINISTRO EDSON FACHIN)
O reconhecimento da repercussão social atribuída à caracterização da injúria racial como forma de racismo é consolidado com o julgamento do HC 154.248/DF, o qual dá ensejo à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6987) impetrada pelo Partido Cidadania que, por meio das resoluções vinculadas ao controle concentrado de constitucionalidade e da hermenêutica constitucional, elucida as ressonâncias históricas da perniciosa divergência ontológica, jurisprudencialmente inventada, entre “injúria racial” e “racismo”, definindo o primeiro crime como imprescritível, tendo em vista que trata-se de uma espécie de racismo que infringe a dignidade coletiva da comunidade preta.
Nesse viés, primeiramente, cabe explicitar quais fatores corroboram a estrutura racializada que marginaliza as pessoas pretas e potencializa a subordinação. De acordo com o Ministro Edson Fachin, relator do Habeas Corpus 154.248, as condicionantes de ordem ideológica fomentam a inferioridade por meio de expressões de aversão, de ódio ou de meios que exortem a violência. Além disso, os fatores de cunho material obstaculizam o acesso aos bens – como, por exemplo, a educação, a saúde e empregos –que dignificam a vida das populações marginalizadas.
“Estereótipos raciais representam certos segmentos como essencialmente inferiores; as pessoas deixam de ter acesso a oportunidades materiais e ao reconhecimento da igual dignidade, dois requisitos para o pleno desenvolvimento humano.” (ADILSON MOREIRA)
De acordo com o inciso XLII do art. 5 da Constituição Federal de 1988, o racismo corresponde a crime inafiançável e imprescritível. Desse modo, é mister não eclipsar as memórias e ressonâncias dos traumas impostos à população negra, tendo em vista o impacto nocivo e as lesões geradas pelo passado escravocrata. Sob essa óptica, cabe expor a definição de racismo proposta pelo professor Silvio de Almeida, o qual caracteriza o crime supracitado como, lamentavelmente, inerente às relações da sociedade pátria, constituindo as relações econômicas, políticas, jurídicas e sociais, bem como integrando um sistema institucionalizado para segregar, fomentar a discriminação e afetar a vida das comunidades marginalizadas. Efetuando uma análise sociológica, cabe propor a simbiose entre o enquadramento da injúria racial como forma de racismo e a máxima do “espaços dos possíveis”, abstração proposta por Pierre Bourdieu que remete à ocorrência de embates dicotômicos nas esferas argumentativas. Nesse diapasão, é necessário reiterar o voto de Luís Roberto Barroso que constrói, cronologicamente, as dissonâncias no tratamento da questão em diferentes lapsos temporais, consolidando um parâmetro comparativo entre os momentos diferentes da história brasileira e dando ensejo ao “espaço dos possíveis”. A princípio, a hegemonia das teorias eurocêntricas fomentam a equivocada crença de uma supremacia racial, a qual exilou populações negras e exortou a deletéria primazia branca. Em um segundo momento, a prevalência da tese do humanismo racial permeou a realidade brasileira, haja vista a suposta crença de uma sociedade marcada pela mestiçagem e composta por indivíduos “iguais”, inferindo a errônea nulidade atribuída à segregação das pessoas negras no Brasil. Por fim, a sociedade nacional contemporânea reforça a necessidade de não ser condescendente com as práticas racistas, enaltecendo a preponderância, na esfera do espaço dos possíveis, do último lapso que defende a mitigação da discriminação de premissas basilares racistas e é antagônico às propostas remotas que exortam a supremacia racial.
Do mesmo modo, a historicização da norma, substância sociológica preconizada por Pierre Bourdieu, refere-se à adaptação do ordenamento jurídico às demandas sociais contemporâneas. Sendo assim, a título de elucidação da abstração supracitada, cabe inferir um trecho do voto do Ministro Luiz Fux que ressalta a notoriedade da força constitucional em construir uma sociedade eximida de qualquer forma de discriminação, mitigando a impunidade dos crimes de racismo e concretizando dispositivos penais que tutelem os grupos marginalizados:
“A evolução legislativa na proteção contra o racismo não mais se restringe ao diploma elaborado em 1989, passando a ser objeto também do Código Penal, em resposta ao mandado de criminalização que, por força da Constituição, reforça os mecanismos de combate às consequências do regime desumano da escravidão no Brasil. A efetividade das normas constitucionais que visam à construção de uma sociedade inclusive, livre de preconceitos e de toda forma de discriminação, impede que se estabeleçam diferenciações entre os dispositivos penais voltados à proteção de grupos vulneráveis, independentemente do nomen juris conferido ao delito, desde que o bem jurídico protegido seja aquele previsto na Constituição como imprescritível e inafiançável.” (MINISTRO LUIZ FUX)
Elucidando a matéria argumentativa inerente ao Plenário, é mister pontuar a concepção alvitrada por Garapon referente à “magistratura do sujeito”, ou seja, a expressiva incumbência atuante do Judiciário apresenta notoriedade e se torna imprescindível em prover condições que não só dão ensejo à igualdade material no tratamento das mazelas raciais – as quais estão vinculadas ao degradante estado de subalternização das populações pretas – mas também que viabilizem o enquadramento da injúria racial como forma de racismo. Sendo assim, o protagonismo dos magistrados é uma ferramenta primordial em concretizar a compreensão de que sempre que um indivíduo é atacado, a coletividade é atingida. Consequentemente, é imperativo caracterizar a diferenciação, na esfera penal, entre racismo e a injúria racial como nula e inexistente, tendo em vista o papel notório do Judiciário em evidenciar a tipificação da injúria como espécie de racismo, reiterando a paradigmática decisão presente no ARE n. 686.965, a qual admite o crime de injúria racial como imprescritível por configurar uma forma de racismo. Do mesmo modo, exemplificando a máxima preconizada por Garapon, cabe citar a consoante defendida por Álvaro Ricardo de Souza Cruz e por Paulo Iotti referente à decisão do HC n. 82.424/RS: “o Supremo também aplicou outro standard, qual seja, o de que a violação dos direitos fundamentais de um indivíduo não atinge (interessa) apenas a ele. Em outras palavras, quando o direito fundamental de alguém é violado, toda a comunidade é atingida.” (NUCCI, 2015).
Ademais, a proposta de McCann referente à “mobilização do Direito” corresponde a um artifício resolutivo que cerceia a inércia de políticas tutelares que transpõem vias de seguridade social no tocante ao arranjo ontológico de enquadramento da injúria racial como espécie de racismo, visto que, de acordo com o Partido Cidadania, a distinção axiológica entre injúria racial e racismo corrobora a perpetuação da discriminação de viés racista no paradigma nacional. Nesse sentido, a premente impunidade do racismo no Brasil é dada pela decretação de prescrição da generalidade dos casos de injúria racial na esfera nacional. Como consequência, cabe ressaltar que a influência peremptória e autoritária do Judiciário perfaz uma asserção ilusória, sendo imperativo propor a metamorfose dessa compreensão em uma perspectiva tutelar das demandas que dignifiquem a vida das pessoas pretas. A título de elucidação da “mobilização do Direito”, é pertinente citar um trecho do voto do Minisro Luiz Fux: “Assim se encaminhou a nossa jurisprudência, no julgamento de causas que envolveram antissemitismo e homofobia, de modo a conferir proteção permanente a todos os grupos vulneráveis – grupos que foram vulnerabilizados, ao longo da história, pelos poderes políticos e por maiorias eleitorais.” (MINISTRO LUIZ FUX)
Do mesmo modo, para Sara Araújo e Boaventura de Sousa Santos, o antagonismo dualista imanente à conjuntura contemporânea representa a supremacia setentrional em depreciação dos conjuntos não-hegemônicos, os quais são alvo do ostracismo demarcado pela linha abissal que fomenta, pelas ressonâncias do Direito enquanto artifício segregatório, a abstração legal que obstaculiza a legitimação das vicissitudes aviltadas pela primazia do norte. Sob essa óptica, a Epistemologia do Sul, em consonância com a Ecologia de Justiça, exterioriza olhares de mundo distintos – os quais integram a construção de reformas à dogmática hegemonia setentrional. Além disso, a Epistemologia do Sul renuncia a prevalência das monoculturas que não só inibem a expansão do cânone judiciário, mas também, por meio da monocultura jurídica respaldada pela racionalidade, ratifica a inobservância dos direitos locais e a negligência das tutelas jurídicas. Sendo assim, apesar da incumbência ambígua do Direito e de sua hermenêutica diatópica, a ecologia dos saberes promove a adoção do ordenamento como recurso resolutivo de, por um lado, efetivar artifícios processuais que consumam o reconhecimento dos marginalizados pelo sistema de dominação do norte. Logo, a ressonante herança escravocrata está prevista na sociedade marcada pelo racismo estrutural que constrói a relação de vassalagem da população negra, urgindo adotar o princípio da proporcionalidade no combate à impunidade e no reconhecimento e reparação dos direitos humanos infringidos pela promoção da primazia setentrional. É mister mencionar, a título de elucidação do Direito enquanto ferramenta processual que materializa condições basilares de dignidade às pessoas pretas por meio da integração do crime de injúria racial como espécie de racismo, a fala da Ministra Rosa Weber:
“Desse modo, entendo, Senhor Presidente, que o crime de injúria racial carrega componente valorativo inerente ao âmbito conceitual do racismo, vale dizer, as ofensas e os insultos decorrem da raça, da cor, da religião, da etnia, da procedência nacional, razão pela qual também o crime de injúria qualificada pelo racismo incide nas cláusulas constitucionais de imprescritibilidade e inafiançabilidade – art. 5o, XLII, da Constituição Federal.” (MINISTRA ROSA WEBER)
Por fim, o enquadramento da injúria racial como forma de racismo pode ser dilucidado pela abstração proposta por Achille Mbembe referente à efabulação e à despersonificação das pessoas pretas enquanto sujeitos de direitos. Nesse diapasão, enquanto o Ocidente consolida a proposta de codificação das garantias civis e políticas dos cidadãos, a estigmatização imagética do Negro, lamentavelmente, assume uma concepção pejorativa, demarcada por vazios princípios negativos que enaltecem a pretensão de uma figura perniciosa e hostil, despersonificando a existência da população preta. Consequentemente, a exortação do eurocentrismo – demarcada pela equivocada digressão do mundo setentrional em detrimento da fluência subalterna da esfera meridional – é permeada pela efabulação, a qual corresponde a um nocivo processo fictício e apartado do plano factual, engendrando o esquecimento, omitindo a riqueza cultural das matrizes africanas e apagando os fragmentos da memória vinculados a sua língua, religião e, em suma, sua história. Além disso, é importante citar um trecho proferido por Mbembe na sua obra “A Crítica da Razão Negra” referente à compreensão do Negro enquanto símbolo de resistência às injúrias, à coerção hodierna e ao violento passado escravocrata: “
Produzir o Negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento. Mercê de trabalhar à corveia, o Negro é também nome de injúria, o símbolo do homem que enfrenta o chicote e o sofrimento num campo de batalha em que se opõem grupos e facções sociorracialmente segmentadas.” (MBEMBE, 2014).
Sendo assim, a diferenciação axiológica entre a injúria racial e o racismo, sob a égide de negligenciar os direitos fundamentais das populações pretas, é dada pela gênese da efabulação, a qual suprime a existência da pessoa negra enquanto sujeito de direito e esboça o esquecimento das matrizes culturais afrodescendentes. Consequentemente, enquadrar a injúria racial como espécie de racismo é materializar a voz do Negro enquanto, não apenas um símbolo de resistência à violência racial, mas principalmente como um sujeito que deve ser ouvido e ter garantias fundamentais efetivas contra o ostracismo e qualquer forma de discriminação. Por fim, cabe reiterar que o arranjo valorativo da injúria racial como forma de racismo é imprescindível em um país, demarcado pela violência física e moral de viés racista, como o Brasil. Como efeito, restringir as acusações que exortam a coerção contra as pessoas pretas a um ataque de perspectiva individual é anular a dor provocada a uma comunidade inteira, minimizando-a e negligenciando os danos que reverberam desde o passado escravocrata. Assim, cabe mencionar um trecho presente na petição de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6987) impetrada pelo Partido Cidadania: “Sempre que um indivíduo é atacado a coletividade é atingida. Negros e negras que leem notícias cotidianas sobre violência racial são também atingidos(as) psicologicamente, pois, sabem que podem ser a próxima vítima, seus filhos, netos, netas, irmãos, irmãs estão suscetíveis a sofrer violência concreta sem reparação alguma posteriormente.” (PARTIDO CIDADANIA). Em suma, para elucidar o exposto anteriormente, cabe reiterar um trecho do poema “Certidão de Óbito” de Conceição Evaristo – escritora ativista brasileira que ancora suas obras literárias na luta do movimento negro – o qual transcreve as memórias traumáticas impostas pela proposição remota colonial de forma opressiva a fim de silenciar as matrizes culturais da população negra:
“A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo, no escuro
um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem
veio lavrada desde os negreiros.”
Nome: Maria Yumi Buzinelli Inaba
1° ano de Direito (Matutino)
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