A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54 (ADPF 54) possui o objetivo de assegurar as gestantes de anencefálicos a autorização de interrupção da gravidez. A Anencefalia é um defeito congênito, uma má formação do tubo neural que ocorre por volta da quarta semana de gravidez e acarreta o não desenvolvimento (ou desenvolvimento parcial) do cérebro e cerebelo. Segundo Thomas Gollop, médico docente em genética na USP, após o parto, a criança anencefálica sobrevive, na maioria das vezes, por poucas horas, se chegarem a tal estágio, pois 50% das mortes ocorrem com o embrião ainda no útero, 99,5% morrem logo após o parto e 0,5 sobrevivem por dias ou até poucos meses; uma quantidade ínfima consegue sobreviver até sem aparelhos, mas sobrevivem em estado vegetativo em cerca de até dois anos, causando danos à saúde física e psicológica da mãe maiores que uma gravidez típica.
O aborto é criminalizado no artigo 124 do Código Penal e conta com poucas exceções legais, dentre elas o aborto em caso de anencefalia, o Supremo Tribunal Federal autorizou facultativamente a prática da cessação da gestação de fetos anencefálicos, a fim de promover a dignidade humana da mulher e a diminuição de seu sofrimento.
Ocupando posições de dominadas, através do
poder simbólico, as mulheres, sobretudo tratando-se aqui daquelas com menores
condições financeiras, possuem, no geral, pouco poder sobre seus corpos e ínfimo
domínio sobre questões de sexo, sexualidade e ainda sobre seus órgãos competentes
ao sistema reprodutivo. O Direito, segundo Bourdieu (1930-2002) possui o dever
de negar se colocar somente a serviço das classes dominantes e apesar de
relativa independência, jamais o direito deve permanecer alheio as pressões
geradas em seios sociais, contrariando a autonomia absoluta jurídica aderida
por Kelsen; desta forma, destaca-se o confronto dado entre a Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Saúde e o ideal conservador social que defende a
ideia Pró-Vida, como exemplificado pela ex-Ministra Damares, que defende
campanhas contra situações abortivas legais. Entretanto, as duas posições nesta
luta simbólica não são necessariamente antagonistas, onde uma delas é vilã,
considerando o capital diferente entre elas, os recursos culturais, sociais,
educação formal e acima de tudo isso o habitus, o conhecimento e movimentações
que o indivíduo adquiriu durante sua vida.
As lutas simbólicas se manifestam dentro do
campo jurídico o princípio de transformação, através da luta pela
descriminalização do aborto de anencefálicos é possível notar o desprendimento obrigatório
do direito à moral e inclusão no espaço dos possíveis. A luta travada no espaço
dos possíveis demonstra sua estrutura amorfa e em constante transformação,
movido pela lógica e ética baseado na tendência do Direito em obter um corpus equânime,
ainda de modo lento, mas aos poucos avançando na racionalização das situações de
dominação social e consequentemente sua modificação, considerando o equilíbrio entre
lógica normativa da moral e a lógica positiva da ciência.
Apesar do tom de universalização da norma sob a cláusula Untermassverbot, ainda existe a impossibilidade da racionalidade pura dentro do espaço dos possíveis, devido a posição hierárquica dos magistrados. Graças a isto, a historicização da norma produz o veredicto em conferir triunfo da legalização do aborto de fetos anencefálicos, garantindo mais uma política pública de saúde, concedendo para a mulher, através dos recursos jurídicos disponíveis, a liberdade de decisão para escolher à medida que apresenta maior eficácia na maneira de lidar com sua situação particular de sofrimento.
Bianca Lopes de Sousa - Matutino
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