Natalina entrou no ônibus já sentindo o dia pesar sobre suas costas. Havia acordado às 6 horas da manhã e, depois de enfrentar o transporte público, trabalhar durante 9 horas e fazer as compras do mês, já passava do horário de pico - situação que ela tentava evitar ao máximo, mas que, na maioria das vezes, era impossível escapar. Encontrou um canto onde pudesse se encostar e ao mesmo tempo vigiar as compras. Desceu, como de costume, no ponto mais próximo de sua casa, se esforçando para equilibrar a carga que trazia do supermercado com o cansaço que carregava em seu corpo. Pensou que seria bom ter alguém para ajudá-la, mas, rapidamente abafou essa ausência com uma enorme vontade de dar conta de tudo, pois assim é a vida. Fazer tudo sozinha, não depender de ninguém, ter responsabilidade. É assim que tem que ser.
Ao passar em frente ao bar da esquina da casa onde morava, viu um morador de rua jogado na calçada, sentiu um misto de dó e repulsa. Pensou em ir mais tarde dar-lhe um prato de comida e um copo d’água. No mesmo instante, lembrou do que a primeira-dama do Estado de SP havia falado esses dias, num vídeo que ela recebeu no grupo de WhatsApp do pessoal do trabalho. A tal da Bia Doria e sua amiga, Val, disseram que não se pode dar comida às pessoas em situação de rua, pois elas têm que se conscientizar e sair da rua, que é, hoje, um grande atrativo.
Natalina olhou para trás e pensou: “Eu é que não me atrairia por uma vida dessas… Deus me livre! Mas… se elas disseram isso, deve ser verdade mesmo. Estão vivendo tão bem, não têm que se preocupar com nada. Talvez o segredo do sucesso seja aplicar o que os governantes dizem que é o melhor, pois eles sabem do que estão falando. Aliás, é como a esposa do governador falou: se queremos viver numa nação, temos que ter responsabilidade. Não dá só pra esperar as coisas de mão beijada.” Este pensamento fez ressoar na sua cabeça alguns versos de uma música do Gonzaguinha, que seu pai escutava quando criança: “Você deve aprender a baixar a cabeça/E dizer sempre: ‘Muito obrigado’/São palavras que ainda te deixam dizer/Por ser homem bem disciplinado/Deve pois só fazer pelo bem da Nação/Tudo aquilo que for ordenado/Pra ganhar um Fuscão no juízo final/E diploma de bem comportado”.
Percebeu que o tom da música soava mais como uma ironia, “mas também é muito fácil só criticar e não fazer nada”, pensou. Ela mesma conhecia muita gente que não batalhou o suficiente e reclamava depois que a vida não dava retorno. Natalina, ao contrário, sabia que havia abdicado de muitos sonhos e vontades em nome do modo correto de viver em sociedade, pois acreditava piamente que esse era o certo a se fazer. Sua paixão na adolescência pela melhor amiga, por exemplo. Embora fosse correspondida, ela sabia que era errado priorizar este sentimento, pois não passava de um mero desejo, algo que não corresponde às normas da natureza, de reprodução e construção das famílias. Afinal, a relação homem-mulher que deu a vida a todos e possibilitou a propagação da nossa espécie!
Ela nutria um certo orgulho dessa renúncia de si mesma, embora o coração sempre acelerasse quando ela permitia se imaginar vivendo seus desejos e sendo quem gostaria de ser. Trabalhando como cantora, amando mulheres, sem se sentir tão massacrada... Mas ela não tinha nascido pra isso, não. Esse não era seu lugar e ela aceitara isso, já não relutava mais, pois a relutância a havia feito sofrer ainda mais.
Depois de algum tempo de distrações, fazendo seu jantar e tomando banho, resolveu ligar a tv e se assustou com o horário. Não havia feito quase nada e a novela que gostava já estava acabando! Assistiu o finzinho afundada no sofá, desejando ficar ali por um pedaço de pra sempre. Mas logo depois foi dormir, porque amanhã precisava acordar cedo para pegar a xepa da feira e ainda se sentir recompensada.
Ao passar em frente ao bar da esquina da casa onde morava, viu um morador de rua jogado na calçada, sentiu um misto de dó e repulsa. Pensou em ir mais tarde dar-lhe um prato de comida e um copo d’água. No mesmo instante, lembrou do que a primeira-dama do Estado de SP havia falado esses dias, num vídeo que ela recebeu no grupo de WhatsApp do pessoal do trabalho. A tal da Bia Doria e sua amiga, Val, disseram que não se pode dar comida às pessoas em situação de rua, pois elas têm que se conscientizar e sair da rua, que é, hoje, um grande atrativo.
Natalina olhou para trás e pensou: “Eu é que não me atrairia por uma vida dessas… Deus me livre! Mas… se elas disseram isso, deve ser verdade mesmo. Estão vivendo tão bem, não têm que se preocupar com nada. Talvez o segredo do sucesso seja aplicar o que os governantes dizem que é o melhor, pois eles sabem do que estão falando. Aliás, é como a esposa do governador falou: se queremos viver numa nação, temos que ter responsabilidade. Não dá só pra esperar as coisas de mão beijada.” Este pensamento fez ressoar na sua cabeça alguns versos de uma música do Gonzaguinha, que seu pai escutava quando criança: “Você deve aprender a baixar a cabeça/E dizer sempre: ‘Muito obrigado’/São palavras que ainda te deixam dizer/Por ser homem bem disciplinado/Deve pois só fazer pelo bem da Nação/Tudo aquilo que for ordenado/Pra ganhar um Fuscão no juízo final/E diploma de bem comportado”.
Percebeu que o tom da música soava mais como uma ironia, “mas também é muito fácil só criticar e não fazer nada”, pensou. Ela mesma conhecia muita gente que não batalhou o suficiente e reclamava depois que a vida não dava retorno. Natalina, ao contrário, sabia que havia abdicado de muitos sonhos e vontades em nome do modo correto de viver em sociedade, pois acreditava piamente que esse era o certo a se fazer. Sua paixão na adolescência pela melhor amiga, por exemplo. Embora fosse correspondida, ela sabia que era errado priorizar este sentimento, pois não passava de um mero desejo, algo que não corresponde às normas da natureza, de reprodução e construção das famílias. Afinal, a relação homem-mulher que deu a vida a todos e possibilitou a propagação da nossa espécie!
Ela nutria um certo orgulho dessa renúncia de si mesma, embora o coração sempre acelerasse quando ela permitia se imaginar vivendo seus desejos e sendo quem gostaria de ser. Trabalhando como cantora, amando mulheres, sem se sentir tão massacrada... Mas ela não tinha nascido pra isso, não. Esse não era seu lugar e ela aceitara isso, já não relutava mais, pois a relutância a havia feito sofrer ainda mais.
Depois de algum tempo de distrações, fazendo seu jantar e tomando banho, resolveu ligar a tv e se assustou com o horário. Não havia feito quase nada e a novela que gostava já estava acabando! Assistiu o finzinho afundada no sofá, desejando ficar ali por um pedaço de pra sempre. Mas logo depois foi dormir, porque amanhã precisava acordar cedo para pegar a xepa da feira e ainda se sentir recompensada.
Fabiana Gil de Pádua - Direito UNESP (Turno Noturno)
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