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quinta-feira, 28 de junho de 2018

Narrativa jurídica moderna


            Professor renomado e Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura de Souza Santos, em seu livro “As Bifurcações da Ordem: Revolução, Cidade, Campo e Indignação”, discute as possibilidades emancipatórias da área jurídica. Na sua obra, o autor possui uma visão otimista, nítida no capítulo VI, revelando que Direito pode ser mobilizado a partir de movimentações políticas abrangentes, através de “recursos aos tribunais para apresentar queixas e reivindicações”, “pressão sobre a burocracia estatal” e busca por “alterações legislativas”, e, concomitantemente, uma visão pessimista, apresentada no capítulo VII, em que, para os movimentos sociais novíssimos, compostos pelos denominados indignados, o Direito “só pode ser recuperado como instrumento emancipatório se a democracia for refundada e, de certo modo, reinventada”. Nesse sentido, com o intuito de explanar se é possível ocupar o campo jurídico, por meio de conceitos abordados por Boaventura, é válido mostrar o “agravo de instrumento interposto por Plínio Formiguieri e Valéria Dreyer Formighieri, contra a decisão judicial que, nos autos da ação de reintegração de posse endereçada contra Loivo Dal Agnoll e outros, indeferiu a liminar reintegratória”, o qual revela a importância das lutas sociais, a exemplo do MTST, na conquista de direitos constitucionais.

            A partir da análise do julgado, em primeiro lugar, nota-se que o voto do Desembargador Luís Augusto Coelho Braga contém inúmeras referências do Direito Configurativo que prepondera no sistema judiciário brasileiro atualmente. Segundo ele, o MTST possui uma postura contrária ao direito tutelado pela Carta Magna, pois “não é desrespeitando as leis e agindo de forma temerária e revolucionária, nos moldes de guerrilha, dentro de um Estado Democrático de Direito, onde todo cidadão tem assegurado o exercício do legítimo direito de defesa da propriedade e de seu uso privado, quebrando a paz social e a tranquilidade jurídica e legal, que alcançarão a justa reforma agrária ou urbana”. Esse tipo de Direito, apresentado por Boaventura, luta por sua conservação e rigidez, configurando uma dualidade abissal entre os oprimidos (chamado de “direito dos 99%”) e opressores (denominado “direito dos 1%”). Nesse sentido, há de se afirmar que há lutas e ocupações violentas porque a ciência jurídica ainda é mantida pelas relações de poder realizadas pelos sujeitos dominadores, os quais buscam privar as conquistas das minorias, e instituem como ilegais tudo aquilo que foge do padrão conservador do campo jurídico.
            No entanto, embora existam indivíduos imersos na estrutura configurativa do Direito, as estratégias sociojurídicas dos movimentos sociais, com enfoque no Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, têm alcançado várias personalidades jurídicas, a exemplo dos outros dois desembargadores que julgaram o agravo de instrumento supracitado, Carlos Rafael Dos Santos Junior (Relator) e Mário José Gomes Pereira (Revisor), indicando a possibilidade de existência de um Direito Reconfigurativo no meio social, conforme mostrado por Boaventura de Souza Santos. As ações do movimento chamam a atenção para a estratégia de buscar uma interpretação nova, de se utilizar uma hermenêutica que instrumentalize um caráter contrahegemônico. Assim, a perspectiva de representar não somente o status quo, mas de dar voz, no campo jurídico, aos 99%, minimiza o abismo presente entre o direito dos oprimidos e o direito dos opressores. Tal é a veracidade da proposição apresentada que, segundo o revisor do agravo, “o Poder Judiciário não pode e nem deve ficar à margem dessa questão legal, que representa hoje o mais fundo conflito social brasileiro: o que coloca, de um lado da refrega, vastos contingentes de trabalhadores rurais sem-terra e, do outro, proprietários de glebas de grandes extensões”.
            Além disso, o desembargador Mário José Gomes Pereira, em seu voto, afirma que “o possuidor latifundiário que descumpre o princípio da destinação social da propriedade desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de justiça das populações pobres do campo”. Desse modo, diante da injustiça vivenciada pelas minorias, Boaventura afirma que “o MST tem mostrado acima de tudo a eficiência e a eficácia de suas estratégias políticas e jurídicas na luta por direito e justiça na urgente reforma agrária brasileira”, buscando, por meio de estratégias jurídicas e não-jurídicas, como recursos de Agravo de Instrumento, a prevalência dos direitos humanos sobre os direitos de propriedade e reinterpretações da lei constitucional e processual, construir novos discursos, e traduzir (ato denominado “tradução” pelo renomado professor Boaventura) as exposições e petições provenientes das diversas manifestações dos movimentos sociais para o Direito, ajudando na diminuição das relações de poder e das desigualdades.
                Torna-se evidente, portanto, por meio das inúmeras hermenêuticas díspares no que tange à propriedade e função social, que existe uma ecologia de saberes e de formas interpretativas inclusas no campo jurídico e que a decisão proferida pela maioria dos desembargadores reflete a tentativa em diminuir o abismo (estrutura abissal) existente entre os opressores e oprimidos. Não somente isso, mas que o Direito pode se converter em uma ferramenta emancipatória caso confrontado, mobilizado e adaptado por meio de um constitucionalismo transformador, “que efetivamente promove a igualdade política, social e econômica e o respeito pela igualdade (..) impulsionado de baixo para cima através de um processo político participativo”, conforme abordado por Boaventura. Dessa maneira, o julgado demonstra como o campo jurídico pode “abraçar” novas interpretações sem deixar de ser o mesmo instrumento (não precisa existir uma revolução ou mudança drástica, mas há a permissão para a entrada dos 99%). Esse direito é aquele que trabalha no sentido reconfigurativo, como já abordado, isto é, trazendo para o meio interno aquilo que deveria estar no Direito, mas não está. Logo, uma narrativa jurídica moderna é criada, ocupando essa área tradicionalmente analisada como “própria dos dominantes”.

Leonardo de Oliveira Baroni - Direito (Noturno).

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