Professor renomado e Diretor do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura de Souza
Santos, em seu livro “As Bifurcações da Ordem: Revolução, Cidade, Campo e
Indignação”, discute as possibilidades emancipatórias da área jurídica. Na sua
obra, o autor possui uma visão otimista, nítida no capítulo VI, revelando que Direito
pode ser mobilizado a partir de movimentações políticas abrangentes, através de
“recursos aos tribunais para apresentar queixas e reivindicações”, “pressão
sobre a burocracia estatal” e busca por “alterações legislativas”, e,
concomitantemente, uma visão pessimista, apresentada no capítulo VII, em que, para
os movimentos sociais novíssimos, compostos pelos denominados indignados, o
Direito “só pode ser recuperado como instrumento emancipatório se a democracia
for refundada e, de certo modo, reinventada”. Nesse sentido, com o intuito de
explanar se é possível ocupar o campo jurídico, por meio de conceitos abordados
por Boaventura, é válido mostrar o “agravo de instrumento interposto por Plínio
Formiguieri e Valéria Dreyer Formighieri, contra a decisão judicial que, nos
autos da ação de reintegração de posse endereçada contra Loivo Dal Agnoll e
outros, indeferiu a liminar reintegratória”, o qual revela a importância das
lutas sociais, a exemplo do MTST, na conquista de direitos constitucionais.
A partir da análise do julgado, em
primeiro lugar, nota-se que o voto do Desembargador Luís Augusto Coelho Braga contém
inúmeras referências do Direito Configurativo que prepondera no sistema
judiciário brasileiro atualmente. Segundo ele, o MTST possui uma postura
contrária ao direito tutelado pela Carta Magna, pois “não é desrespeitando as
leis e agindo de forma temerária e revolucionária, nos moldes de guerrilha,
dentro de um Estado Democrático de Direito, onde todo cidadão tem assegurado o
exercício do legítimo direito de defesa da propriedade e de seu uso privado, quebrando a paz social e a tranquilidade
jurídica e legal, que alcançarão a justa reforma agrária ou urbana”. Esse
tipo de Direito, apresentado por Boaventura, luta por sua conservação e rigidez,
configurando uma dualidade abissal entre os oprimidos (chamado de “direito dos
99%”) e opressores (denominado “direito dos 1%”). Nesse sentido, há de se
afirmar que há lutas e ocupações violentas porque a ciência jurídica ainda é mantida
pelas relações de poder realizadas pelos sujeitos dominadores, os quais buscam
privar as conquistas das minorias, e instituem como ilegais tudo aquilo que
foge do padrão conservador do campo jurídico.
No entanto, embora existam
indivíduos imersos na estrutura configurativa do Direito, as estratégias
sociojurídicas dos movimentos sociais, com enfoque no Movimento dos
Trabalhadores Sem-Teto, têm alcançado várias personalidades jurídicas, a
exemplo dos outros dois desembargadores que julgaram o agravo de instrumento supracitado,
Carlos Rafael Dos Santos Junior (Relator) e Mário José Gomes Pereira (Revisor),
indicando a possibilidade de existência de um Direito Reconfigurativo no meio
social, conforme mostrado por Boaventura de Souza Santos. As ações do movimento
chamam a atenção para a estratégia de buscar uma interpretação nova, de se
utilizar uma hermenêutica que instrumentalize um caráter contrahegemônico.
Assim, a perspectiva de representar não somente o status quo, mas de dar voz,
no campo jurídico, aos 99%, minimiza o abismo presente entre o direito dos
oprimidos e o direito dos opressores. Tal é a veracidade da proposição
apresentada que, segundo o revisor do agravo, “o Poder Judiciário não pode e nem deve ficar à margem dessa questão legal, que
representa hoje o mais fundo conflito social brasileiro: o que coloca, de um lado da refrega, vastos contingentes de trabalhadores
rurais sem-terra e, do outro, proprietários de glebas de grandes extensões”.
Além disso, o desembargador Mário
José Gomes Pereira, em seu voto, afirma que “o possuidor latifundiário que descumpre
o princípio da destinação social da propriedade desafia o equilíbrio social e afronta o sentimento de justiça das
populações pobres do campo”. Desse modo, diante da injustiça vivenciada
pelas minorias, Boaventura afirma que “o MST tem mostrado acima de tudo a
eficiência e a eficácia de suas estratégias políticas e jurídicas na luta por
direito e justiça na urgente reforma agrária brasileira”, buscando, por meio de
estratégias jurídicas e não-jurídicas, como recursos de Agravo de Instrumento,
a prevalência dos direitos humanos sobre os direitos de propriedade e
reinterpretações da lei constitucional e processual, construir novos discursos,
e traduzir (ato denominado “tradução” pelo renomado professor Boaventura) as
exposições e petições provenientes das diversas manifestações dos movimentos
sociais para o Direito, ajudando na diminuição das relações de poder e das
desigualdades.
Torna-se
evidente, portanto, por meio das inúmeras hermenêuticas díspares no que tange à
propriedade e função social, que existe uma ecologia de saberes e de formas
interpretativas inclusas no campo jurídico e que a decisão proferida pela
maioria dos desembargadores reflete a tentativa em diminuir o abismo (estrutura
abissal) existente entre os opressores e oprimidos. Não somente isso, mas que o
Direito pode se converter em uma ferramenta emancipatória caso confrontado, mobilizado
e adaptado por meio de um constitucionalismo transformador, “que efetivamente
promove a igualdade política, social e econômica e o respeito pela igualdade
(..) impulsionado de baixo para cima através de um processo político
participativo”, conforme abordado por Boaventura. Dessa maneira, o julgado
demonstra como o campo jurídico pode “abraçar” novas interpretações sem deixar
de ser o mesmo instrumento (não precisa existir uma revolução ou mudança
drástica, mas há a permissão para a entrada dos 99%). Esse direito é aquele que
trabalha no sentido reconfigurativo, como já abordado, isto é, trazendo para o meio
interno aquilo que deveria estar no Direito, mas não está. Logo, uma narrativa
jurídica moderna é criada, ocupando essa área tradicionalmente analisada como
“própria dos dominantes”.
Leonardo de Oliveira Baroni - Direito (Noturno).
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