A questão do direito ao corpo, em especial o feminino, é cara para a sociedade brasileira e seu sistema jurídico. O debate sobre a interrupção cirúrgica da gravidez de risco ou indesejada é bastante delicado em um país de bases morais patriarcais. Todo o ônus da matéria cai sobre a mulher que pratica o aborto, que tem sua moral, integridade e caráter a todo momento questionados. O ordenamento jurídico brasileiro age no sentido da culpabilização e criminalização da mulher que pratica a interrupção da gravidez.
O contornos da questão do aborto no Brasil são ainda mais sensíveis. Enquanto o poder público se escusa de empenhar políticas qualificadas para garantir a integridade da mulher que deseja interromper a gravidez, duas situações distintas se configuram: as mulheres ricas recorrem à qualificadas clínicas, muitas vezes no exterior; as pobres e trabalhadoras são obrigadas a se submeter a procedimentos de risco em clínicas clandestinas e insalubres. O aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil. A mulher pobre, quando não morre na clínica clandestina, sofre sanção penal, podendo sofrer pena de reclusão de até 10 anos.
O aborto está intimamente ligado à questão do direito ao corpo e a autonomia feminina. Não deve a sociedade, muito menos o ordenamento jurídico, imprimir limitações à liberdade do corpo. A mulher que não se sente confortável ou não tem condição para criar um filho não pode ser obrigada a fazê-lo, assumir o encargo de todo o processo. Mais absurdo ainda é que o direito haja expressamente de encontro com a criminalização da condição feminina.
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal protagonizou destacadas e pontuais decisões progressivas em relação à interrupção da gravidez. No ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal discutiu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADFP) 54, que reivindicava a inconstitucionalidade da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, e tomou decisão favorável à interrupção da gravidez. No final do mês de novembro passado, a Primeira Turma do STF firmou entendimento contrário à criminalização da interrupção da gravidez nos primeiros três meses de gestação.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês, em seu texto "O Poder Simbólico", critica as correntes marxista-estruturalista e kelseniana-positivista de estudo do direito. Defende que a análise do direito não deve ser centrada nem somente na observação das estruturas econômicas, sociais e materiais, tampouco na supremacia da norma formal, mas a partir de uma combinação de ambas: um direito apegado às formalidades e instituições normativas e que seja capaz de absorver e corretamente intervir sobre a realidade material. Universalidade, impessoalidade e neutralidade seriam os princípios norteadores dassa concepção híbrida de análise e prática jurídica.
Quando os ministros do STF discutiam a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, se deparavam com uma lei que expressamente tipificava a prática como crime. A norma, entretanto, estava em desconformidade com a situação social em sua materialidade: o nascimento de um bebê anencéfalo é um processo extremamente delicado e expõe tanto a mãe quanto o feto a grandes riscos de saúde; a anencefalia é ainda uma patologia letal, a expectativa de vida dos bebês anencéfalos é muito curta e o tratamento penoso. Nessa situação, o direito precisou se adaptar, editar sua apreciação normativa sobre a matéria da interrupção da gravidez para atender às condições materiais. Precisou o direito exercer seu flexibilidade, para conciliar o desacordo formal com a realidade material. Foi uma experiência de prática a proposta híbrida de Bourdieu.
Mas a tese de Bourdieu possui ainda algumas lacunas e falhas. Pode-se, por exemplo, apelar para a neutralidade e impessoalidade de um julgamento com sensível envolvimento moral, político, social e econômico? Tendo a decisão do Supremo indo de encontro com a reivindicação dos movimentos de defesa dos direitos da mulher e sendo 80% da população brasileira contrária a prática de interrupção da gravidez, pode-se falar em neutralidade e impessoalidade do sistema jurídico?
Deveria o direito agir para solucionar os conflitos humanos e assegurar a dignidade de todos os homens e mulheres. O sistema jurídico não pode se enclausurar em seu aparato normativo e ignorar a materialidade da condição humana. É dever dos operadores e pensadores do direito agir para superar contradições e conflitos sociais - a norma formal, por sua vez, vem a reboque, devendo se adaptar quando necessário.
Guilherme da Costa Aguiar Cortez - 2º semestre de Direito (matutino)
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