''Em resumo, as relações que o direito cooperativo com sanções restitutivas regula e a solidariedade que elas exprimem resultam da divisão do trabalho social.É fácil entender, aliás, que, em geral, as relações cooperativas não comportam outras sanções.De fato, pertence à natureza das tarefas especiais escapar da ação da consciência coletiva; porque, para que uma coisa seja objeto de sentimentos comuns, a primeira condição é que seja comum, isto é, que esteja presente em todas as consciências e que todas possam representá-la de um só e mesmo ponto de vista.Sem dúvida, enquanto as funções têm certa generalidade, todo o mundo pode ter algum sentimento a seu respeito; no entanto, quanto mais se especializam, mais também se circunscreve o número dos que têm consciência de cada uma delas; e mais, por consegüinte, elas vão além da consciência comum.As regras que as determinam não podem, pois, ter essa força superior, essa autoridade transcendente que, quando é ofendida, reclama uma expiação.É também da opinião pública que lhes vem sua autoridade, do mesmo modo que a das regras penais, mas de uma opinião localizada em regiões restritas da sociedade''.
Na obra ''De La Division Du Travail Social'' ( Da Divisão Do Trabalho Social ), mais precisamente no capítulo III do Livro I, ''A Solidariedade Devida À Divisão Do Trabalho Ou Orgânica'', David Émile Durkheim apresenta a mediação do Direito em sociedades complexas como a expressão da racionalidade moderna.Na mesma obra e livro, na altura do capítulo I ( ''Método Para Determinar Esta Função'' ), o sociólogo francês subdivide, alicerçando-se no Funcionalismo, as sociedades humanas em primitivas ou pré-modernas e em complexas ou modernas.Estas últimas, são caracterizadas pela racionalidade que engendra uma maior divisão do trabalho social.Tal divisão é a geratriz da solidariedade orgânica, que a todos vincula na sociedade moderna, bem como é também a gênese do Direito Restitutivo, próprio desta sociedade.A idéia de expiação, tão essencial no Direito Repressivo das sociedades primitivas, é permutada pela idéia de reparação, imprescindível ao Direito Racional : ''A própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que a solidariedade social a que esse direito corresponde é uma espécie de bem diferente.O que distingüe essa sanção é que ela não é expiatória, mas se reduz a uma simples restauração''.Para Durkheim, o Direito nas sociedades complexas, impregnado de racionalismo e de repúdio à passionalidade, não anela ministrar sanção à altura do delito; tão pouco busca humilhar o delinqüente ou puní-lo via pena difusa; antes, é técnico e operacional; é o direito das indenizações : ''Um sofrimento proporcional a seu malefício não é inflingido a quem violou o direito ou o menospreza; este é simplesmente condenado a submeter-se a ele.Se já há fatos consumados, o juiz os restabelece tal como deveriam ter sido.Ele enuncia o direito, não enuncia as penas.As indenizações por perdas e danos não têm caráter penal, são somente um meio de voltar ao passado para restituí-lo, na medida do possível, sob sua forma normal.A inobservância dessas regras sequer é punida por pena difusa.O pleiteante que perdeu seu processo não é humilhado, sua honra não é enodoada.A violação dessas regras não atinge, pois, em suas partes vivas, nem a alma comum da sociedade, nem mesmo, pelo menos em geral, a desses grupos especiais e , por consegüinte, só pode determinar uma reação muito moderada.Tudo de que necessitamos é que as funções concorram de maneira regular; portanto, se essa regularidade for perturbada, basta-nos que seja restabelecida''.O Direito Racional, uma vez que a divisão do trabalho social se intensifica, não corresponde a um dispositivo inerte ou estático, não se identifica com um sistema imutável ou incontestável, nem está assentado na passionalidade; ao contrário, é passível de alterações e mutações e rejeita veementemente o não-científico : ''Podemos até imaginar que essas regras sejam diferentes do que são, sem que isso nos revolte.A idéia de que o assassinato possa ser tolerado nos indigna, mas aceitamos muito bem que o direito sucessório seja modificado, e muitos até concebem que ele possa ser suprimido.É pelo menos um problema que não nos recusamos a discutir.Do mesmo modo, admitimos sem dificuldade que o direito das servidões ou o direito dos usufrutos seja organizado de outra maneira, que as obrigações do vendedor e do comprador sejam determinadas de outro modo, qua as funções administrativas sejam distribuídas de acordo com outros princípios.Como essas prescrições não correspondem, em nós, a nenhum sentimento e como, em geral, não conhecemos cientificamente suas razões de ser, pois essa ciência não é feita, elas não têm raízes na maioria de nós''.O autor defende que o Direito Restitutivo é consideravelmente distinto do Direito Repressivo das sociedades pré-modernas, quer na sua interação com a sociedade e com a consciência coletiva, quer na diplomacia do conflito de interesses privados : ''É a prova de que as regras com sanção restitutiva ou não fazem em absoluto parte da consciência coletiva, ou são apenas estados fracos desta.O direito repressivo corresponde ao que é o cerne, o centro da consciência comum; as regras puramente morais já são uma parte menos central; enfim, o direito restitutivo tem origem em regiões bastante excêntricas se estente muiti além daí.Quanto mais se torna ele mesmo, mais se afasta.Essa característica, aliás, é tornada manifesta pela maneira como funciona.Enquanto o direito repressivo tende a permanecer difuso na sociedade, o direito restitutivo cria órgãos cada vez mais especiais : tribunais consulares, tribunais trabalhistas, tribunais administrativos de toda sorte.Mesmo em sua parte mais geral, a saber o direito civil, ele só entra em exercício graças a funcionários perticulares : magistrados, advogados, etc., que se tornaram aptos a esse papel graças a uma cultura toda especial.Mas, conquanto estejam mais ou menos fora da consciência coletiva, essas regras não dizem respeito apenas aos perticulares.Se assim fosse, o direito restitutivo nada teria em comum com a solidariedade social, pois as relações que regula ligariam os indivíduos uns aos outros sem vinculá-los á sociedade.Seriam simples acontecimentos da vida privada, como são, por exemplo, as relações de amizade.Mas a sociedade não está ausente dessa esfera da vida jurídica, muito ao contrário.É verdade que, em geral, ela não intervém por si mesma e por sua iniciativa; ela tem de ser solicitada pelos interessados.Mas por ser provocada, sua intervenção não deixa de ser uma engrenagem essencial do mecanismo, pois é apenas ela que o faz funcionar.É ela que diz o direito por intermédio de seus representantes.Sustentou-se, contudo, que esse papel nada tinha de propriamente social, mas se reduzia ao de conciliador dos interesses privados; que, por consegüinte, qualquer particular poderia desenpenhá-lo e que, se a sociedade dele se encarregava, era unicamente por motivos de comodidade.No entanto, nada é mais inexato do que fazer da sociedade uma espécie de árbitro entre as partes.Quando ela é chamada a intervir, não é para acordar interesses individuais; ela não procura a solução mais vantajosa para os adversários e não lhes propõe compromissos, mas aplica ao caso particular que lhe é submetido as regras gerais e tradicionais do direito.Ora, o direito é uma coisa social por excelência e tem um objeto bem diferente do interesse dos litigantes''.
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