Sara Araújo, em seu texto “O
primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos
conceitos, desafiar o cânone”, desenvolve importante crítica
acerca do direito moderno eurocêntrico como reprodução do
colonialismo, propondo novas estratégias jurídicas, dentre as quais
se destaca o pluralismo. Este, segundo defende, viria como um
instrumento de descolonização no âmbito jurídico, visando
princípios tais como a verticalidade, a provincialização e a
ecologia dos saberes legais.
Permito-me
associar a tais considerações a questão da reforma agrária no
Brasil e seu tratamento em âmbito jurídico. É fato que,
historicamente, a distribuição de terras primou, desde o início da
colonização, pela concentração de grandes áreas nas mãos de uma
pequena classe privilegiada. Tal lógica é estruturante na
construção de um Estado e de uma justiça elitistas que sempre
estiveram aliadas à legitimação da má distribuição de terras no
país, servindo como instrumentos de garantia de posse aos grandes
proprietários. A perpetuação desse sistema no pós independência
reflete, como pontua Araújo, o legado do colonialismo jurídico,
pautado em exclusões sociais abissais e na imposição global do
primado de um direito capitalista e neoliberal.
Contra
isso, surgem no Brasil forças de luta pela reforma agrária, como o
Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), fundado no século XX
como um dos maiores contestadores da lógica de concentração de
terra no país. Essa questão, no entanto, por inferir diretamente
num sistema de privilégios enraizado desde o início do processo de
colonização brasileira, gera grande desconforto e incômodo àqueles
que temem a perda de suas propriedades (ou das quais acreditam serem
donos). Por isso, a justiça brasileira se divide entre aqueles que
reconhecem a importância do Movimento e a ele conferem caráter
legítimo e legal, e aqueles que insistem em reproduzir a lógica
colonial de concentração fundiária, defendendo cegamente o direito
inviolável à propriedade privada acima dos direitos sociais.
Como
exemplo dessa polêmica está o caso da Fazenda Primavera, encerrado
pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que negou
provimento ao agravo regimental de reintegração de posse aos
fazendeiros. Nos votos contrários ao provimento, observa-se uma
linha de argumentação pautada na defesa da função social da
propriedade, e no uso do direito como defensor do equilíbrio social
e segurança das populações pobres do campo, as quais teriam
direito à terra e à produção de alimento. Tais ideias se
relacionam com Araújo na medida em que pensa fora da dicotomia de
caos e ordem, abrangendo o entendimento dos movimentos sociais de
luta pela reforma agrária como um discurso jurídico proveniente do
povo, o que deve ser considerado na lógica do pluralismo jurídico,
que considera a justiça informal como instrumento de estabilização
do estado de direito.
Já
a argumentação pelo deferimento da liminar, dialoga com o que
Araújo entende como direito supranacional capitalista. Este não
entende a vida como social, mas prima pelo viés econômico que
inviabiliza o que é local ou particular pela lógica de sufocamento
da escala global. Desta forma, vai de desencontro ao entendimento do
direito como emancipatório, atrelando-se ainda à lógica colonial
na monocultura jurídica, ou seja, contrária ao pluralismo.
Carolina Juabre.
Direito Matutino
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