Epistemologias do Norte x Epistemologias do Sul: notas sobre as distintas concepções sobre o direito de propriedade
No
Agravo de Instrumento n° 70003434388, julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, em 2001, analisou-se mais detidamente o direito de propriedade e
a função social da propriedade de imóvel rural. No julgamento do Agravo, dois desembargadores
votaram pelo improvimento do recurso interposto e um desembargador votou pelo
deferimento da liminar de reintegração de posse aos agravantes. Dessa forma,
por maioria, o colegiado decidiu por negar a reintegração de posse, legitimando
assim a invasão realizada pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), na respectiva
fazenda. Nessa postagem, analisa-se os argumentos utilizados pelos três
ministros na fundamentação de seus respectivos votos, buscando correlacioná-los,
a pedido do docente da disciplina de Sociologia do Direito, com as reflexões
promovidas por Sara Araújo no artigo “O primado do direito e as exclusões
abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”.
Favorável
à reintegração de posse, o voto vencido do Desembargador Luís Augusto Coelho
Braga, baseou numa concepção clássica do direito de propriedade. Em conformidade
à disposição constitucional (art. 184, CF), Braga ressaltou, em seu voto, que compete
à União, e não ao Poder Judiciário, desapropriar por interesse social o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social para fins de reforma agrária.
Nesse sentido, Braga entende que o MST não busca um melhor aproveitamento da
propriedade privada, porquanto utiliza-se do “esbulho possessório como meio
político de obrigar os governos federais e estaduais a tomarem uma atitude desapropriatória
de terras”. Segundo o desembargador, a legitimação de invasões pelo Poder
Judiciário resulta na aceitação que o MST seja alçado a condição de juízes de
uso da terra, sob os padrões de interesse social.
Braga
registra ainda que, além de ser competência da União, o processo de
desapropriação deve seguir o devido processo legal, no qual garante-se o
direito de ampla defesa e do contraditório. No caso em tela, o processo legal
não foi respeitado, uma vez que não se observou a legislação aplicada à espécie.
Desse modo, o Magistrado entende que ao negar o provimento do recurso, o Poder
Judiciário promove a “recusa do próprio mérito, pedido por cautela antecipada”,
autorizando que o MST desrespeite as leis no objetivo de alcançar a reforma agrária,
deflagrando assim o “império da força sobre a lei”.
Como
Braga verificou que a propriedade rural em questão é produtiva e a Constituição
Federal garante que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação
para fins de reforma agrária (art. 185, II, CF), a liminar pela reintegração deve
ser provida. Em conformidade com o pensamento de doutrinadores renomados como o
Professor José Afonso da Silva, a decisão do desembargador está fundada no
entendimento de que essa vedação é absoluta, visto que nenhuma exegese hermenêutica
seria aplicável ao caso.
Os
votos dos desembargadores Carlos Rafael dos Santos Junior (relator) e Mário
José Gomes Pereira, que formaram a maioria pelo improvimento do recurso,
basearam-se no soerguimento na função social da propriedade como Direito
Fundamental. Para Santos Junior, a efetivação da justiça no contexto contemporâneo
exige a concessão de “vida efetiva” à função social da propriedade e, para que
isso aconteça, faz-se necessário buscar “novos rumos” hermenêuticos, que
extrapolem a interpretação jurídica tradicional. Desse modo, o desembargador
entendeu que os autores não demonstraram o grau de utilização e eficiência de
exploração da área, o que evidenciaria o não cumprimento da respectiva função
social.
Seguindo
entendimento semelhante, Gomes Pereira entende que o direito de propriedade não
é absoluto, visto que pode ser limitado pelo não atendimento do dever constitucional
de comprovar a função social da propriedade. Dessa forma, a tutela do Poder
Judiciário ao proprietário somente poderia ser concedida quando se fizesse
prova do cumprimento do dever da função social. Expande-se assim o entendimento
tradicional, no sentido de conceber a propriedade, concomitantemente, como um
direito e um dever fundamental. Para o Magistrado, “é inadmissível que o
latifúndio, violando um preceito constitucional (a função social da
propriedade), receba da Justiça imediata proteção, sob a cobertura da ação de
manutenção ou de reintegração de posse.
Dado
que os votos que garantiram a permanência do MST na respectiva área resultam, de
forma clarividente, de uma concepção não liberal de justiça, é possível traçar
alguns pontos de contato entre essa paradigmática decisão e as ideias sobre
pluralismo jurídico e Epistemologias do Sul, da socióloga Sara Araújo. Em
primeiro lugar, como Sara defende que o reconhecimento do pluralismo jurídico
não envolve necessariamente a superação do direito tradicional, mas uma “ampliação
do cânone jurídico”, talvez seja possível entender, embora não isenta de
controvérsias, que a paradigmática decisão do TJ-RS entabulou uma decisão mais
plural, alargando a compreensão de como a direito de propriedade deve ser concebido
em um país marcado pela desigualdade no acesso à terra, como é o caso
brasileiro.
Em
segundo lugar, ao garantir a permanência ao MST, a referida decisão judicial é,
nos termos das Epistemologias do Sul, emancipatória, visto que revela uma
realidade não contemplada pelo sistema tradicional de justiça. Como o cânone
jurídico eurocêntrico pressupõe uma universalidade de seus princípios, Sara
afirma que “tudo o que é local ou particular é invisibilizado pela lógica da
escala global”. Dessa maneira, a luta pelo acesso à terra no Brasil é
invisibilizada quando se procede a aplicação do instrumental jurídico concebido
segundo as Epistemologias do Norte.
Em
suma, segundo a autora faz-se necessário promover uma ecologia de direitos e de
justiças, por meio da confrontação da concepção liberal burguesa de direito e de
justiça. Diante de um quadro desafiador, em que se verifica a flagrante
morosidade do Poder Executivo e do Poder Legislativo em promover uma efetiva e
justa reforma agrária, a decisão analisada nessa ação, revela, segundo a
perspectiva de Sara Araújo, a existência dos “sulinos”, aqueles que Boaventura
de Sousa Santos concebe como os integrantes da “sociedade civil incivil”.
Kleber – UNESP - Direito - 1º ano DIURNO
Nenhum comentário:
Postar um comentário