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quinta-feira, 29 de agosto de 2019




Epistemologias do Norte x Epistemologias do Sul: notas sobre as distintas concepções sobre o direito de propriedade


No Agravo de Instrumento n° 70003434388, julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2001, analisou-se mais detidamente o direito de propriedade e a função social da propriedade de imóvel rural.  No julgamento do Agravo, dois desembargadores votaram pelo improvimento do recurso interposto e um desembargador votou pelo deferimento da liminar de reintegração de posse aos agravantes. Dessa forma, por maioria, o colegiado decidiu por negar a reintegração de posse, legitimando assim a invasão realizada pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), na respectiva fazenda. Nessa postagem, analisa-se os argumentos utilizados pelos três ministros na fundamentação de seus respectivos votos, buscando correlacioná-los, a pedido do docente da disciplina de Sociologia do Direito, com as reflexões promovidas por Sara Araújo no artigo “O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”.

Favorável à reintegração de posse, o voto vencido do Desembargador Luís Augusto Coelho Braga, baseou numa concepção clássica do direito de propriedade. Em conformidade à disposição constitucional (art. 184, CF), Braga ressaltou, em seu voto, que compete à União, e não ao Poder Judiciário, desapropriar por interesse social o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social para fins de reforma agrária. Nesse sentido, Braga entende que o MST não busca um melhor aproveitamento da propriedade privada, porquanto utiliza-se do “esbulho possessório como meio político de obrigar os governos federais e estaduais a tomarem uma atitude desapropriatória de terras”. Segundo o desembargador, a legitimação de invasões pelo Poder Judiciário resulta na aceitação que o MST seja alçado a condição de juízes de uso da terra, sob os padrões de interesse social.

Braga registra ainda que, além de ser competência da União, o processo de desapropriação deve seguir o devido processo legal, no qual garante-se o direito de ampla defesa e do contraditório. No caso em tela, o processo legal não foi respeitado, uma vez que não se observou a legislação aplicada à espécie. Desse modo, o Magistrado entende que ao negar o provimento do recurso, o Poder Judiciário promove a “recusa do próprio mérito, pedido por cautela antecipada”, autorizando que o MST desrespeite as leis no objetivo de alcançar a reforma agrária, deflagrando assim o “império da força sobre a lei”.

Como Braga verificou que a propriedade rural em questão é produtiva e a Constituição Federal garante que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária (art. 185, II, CF), a liminar pela reintegração deve ser provida. Em conformidade com o pensamento de doutrinadores renomados como o Professor José Afonso da Silva, a decisão do desembargador está fundada no entendimento de que essa vedação é absoluta, visto que nenhuma exegese hermenêutica seria aplicável ao caso.

Os votos dos desembargadores Carlos Rafael dos Santos Junior (relator) e Mário José Gomes Pereira, que formaram a maioria pelo improvimento do recurso, basearam-se no soerguimento na função social da propriedade como Direito Fundamental. Para Santos Junior, a efetivação da justiça no contexto contemporâneo exige a concessão de “vida efetiva” à função social da propriedade e, para que isso aconteça, faz-se necessário buscar “novos rumos” hermenêuticos, que extrapolem a interpretação jurídica tradicional. Desse modo, o desembargador entendeu que os autores não demonstraram o grau de utilização e eficiência de exploração da área, o que evidenciaria o não cumprimento da respectiva função social.

Seguindo entendimento semelhante, Gomes Pereira entende que o direito de propriedade não é absoluto, visto que pode ser limitado pelo não atendimento do dever constitucional de comprovar a função social da propriedade. Dessa forma, a tutela do Poder Judiciário ao proprietário somente poderia ser concedida quando se fizesse prova do cumprimento do dever da função social. Expande-se assim o entendimento tradicional, no sentido de conceber a propriedade, concomitantemente, como um direito e um dever fundamental. Para o Magistrado, “é inadmissível que o latifúndio, violando um preceito constitucional (a função social da propriedade), receba da Justiça imediata proteção, sob a cobertura da ação de manutenção ou de reintegração de posse.

Dado que os votos que garantiram a permanência do MST na respectiva área resultam, de forma clarividente, de uma concepção não liberal de justiça, é possível traçar alguns pontos de contato entre essa paradigmática decisão e as ideias sobre pluralismo jurídico e Epistemologias do Sul, da socióloga Sara Araújo. Em primeiro lugar, como Sara defende que o reconhecimento do pluralismo jurídico não envolve necessariamente a superação do direito tradicional, mas uma “ampliação do cânone jurídico”, talvez seja possível entender, embora não isenta de controvérsias, que a paradigmática decisão do TJ-RS entabulou uma decisão mais plural, alargando a compreensão de como a direito de propriedade deve ser concebido em um país marcado pela desigualdade no acesso à terra, como é o caso brasileiro.

Em segundo lugar, ao garantir a permanência ao MST, a referida decisão judicial é, nos termos das Epistemologias do Sul, emancipatória, visto que revela uma realidade não contemplada pelo sistema tradicional de justiça. Como o cânone jurídico eurocêntrico pressupõe uma universalidade de seus princípios, Sara afirma que “tudo o que é local ou particular é invisibilizado pela lógica da escala global”. Dessa maneira, a luta pelo acesso à terra no Brasil é invisibilizada quando se procede a aplicação do instrumental jurídico concebido segundo as Epistemologias do Norte.

Em suma, segundo a autora faz-se necessário promover uma ecologia de direitos e de justiças, por meio da confrontação da concepção liberal burguesa de direito e de justiça. Diante de um quadro desafiador, em que se verifica a flagrante morosidade do Poder Executivo e do Poder Legislativo em promover uma efetiva e justa reforma agrária, a decisão analisada nessa ação, revela, segundo a perspectiva de Sara Araújo, a existência dos “sulinos”, aqueles que Boaventura de Sousa Santos concebe como os integrantes da “sociedade civil incivil”.   

       
Kleber  – UNESP - Direito - 1º ano DIURNO

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