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sábado, 20 de abril de 2019

Leis totais para perspectivas estagnadas.

  No século XIX, em meio à consolidação da Revolução Industrial e à efervescência histórica e cultural que fragmentava o continente europeu em distintas ideologias, surge o positivismo do filósofo frânces Auguste Comte. Essa corrente filósofica é construida como solução da "anarquia social" vigente na época através da perspectiva científica como principal chave de reorganização da sociedade moderna. Para Comte, portanto, a sociedade poderia ser ordenada e organizada em leis lógicas, cuja formulação vem da investigação da realidade pela observação dos fatos e antecipação dessas consequentes leis naturais, familiares para todos os seres humanos.

Para perceber quanto essa necessidade é profunda e imperiosa, basta pensar um instante nos efeitos fisiológicos do espanto, e considerar ser a sensação mais terrível que podemos sentir aquela que se produz todas as vezes que um fenômeno nos parece ocorrer de modo contraditório às leis naturais, que nos são familiar (COMTE, 1830, p.78)

  Na contemporaneidade ainda persistem os gatilhos positivistas no pensamento e  na ação do indivíduo pós moderno: desde a paternidade de Comte no desenvolvimento da sociologia como ciência humana até a autoridade positiva nos pensamentos e ideologias a respeito das relações humanas. Nesse sentido, a análise dessa segunda permanência positivista é exemplificada pelo pensamento do brasileiro Olavo Luiz Pimentel de Carvalho, especificamente no capítulo Mentiras Gays de seu livro "O Imbecil Coletivo".

  Nessa situação, Olavo de Carvalho inicia seu texto afastando-se da principal função do filósofo, ofício erroneamente atribuido a ele, ao repudiar a reflexão crítica e o questionamento constante através de uma argumentação baseada em uma lógica antecipada e geral, ou seja, positivista. Assim, é possível perceber que a metodologia de sua argumentação textual e ideológica é positivista ao estruturar sua narrativa em "Mentiras Gays" por meio da análise crua e pura de fatos descontextualizados, que são estudados pela própria visão antecipada do autor, legitimada por sua interpretação supostamente universal e correta da história, que pode até ser familiar e natural, mas para quem ?

  A exemplo dessa maquinação dos fatos têm-se, logo no começo do capítulo, uma ilustração histórica sobre os atos sexuais do imperador romano Calígula - "(...) mandava capar os jovens bonitos para tomá-los como noivas (...)" (CARVALHO, 1999, p.204)  - que serve como legitimação plena da máxima de que homossexuais, para Olavo de Carvalho, oprimem muito mais do que sofrem opressão. Como se não bastasse ignorar os inúmeros casos de preconceito e violência contra as expressões sexuais não normativas, Olavo também não se importa em cometer anacronismos ao dissertar sobre a sexualidade na Roma Antiga a partir de sua visão contemporânea. Tal questão pode ser amplamente construida, no entanto, a partir de análises históricas como a do mestre em Antropologia Social Pedro Paulo Abreu Funari em seu livro "Grécia e Roma" :

Na elite romana, aceitava-se como natural que um homem mantivesse relações com mulheres e com homens, em especial, o patrão com seus escravos e escravas. ( FUNARI, 2001, p. 87)

Segundo uma interpretação amplamente aceita, os homens romanos deviam penetrar, para serem considerados homens de verdade e não podiam ser penetrados. ( FUNARI, 2001, p. 87)

  E assim o escritor prossegue sua análise sobre a homossexualidade a partir de uma perspectiva positivista de justificação por leis gerais e "naturais". Consequentemente, Olavo cai em uma visão  simplista que deve ser continuamente justificada por novas interpretações desconexas para não perder sua autoridade. Outro exemplo disso dá-se quando o autor tenta explicar uma suposta falta de valor biológico para as práticas sexuais não heteronormativas. Nesse sentido, chega a ser cômico o apelo à perpetuação humana, como se a sexualidade fosse apenas um meio de procriação e não um dos aspectos presentes na vida humana e suas expressões e relações. Além disso, a sexualidade, no entanto, prova-se influenciada por diversos fatores, não apenas biológicos, ainda mais após a modernidade, como afirma o filósofo Michel Foucault em sua obra Microfísica do poder.
Pensamos em todo caso que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia e que ele escapa à história. Novo erro; ele é formado por uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos – alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria resistências.   (FOUCAULT, 1979, p. 27) 
    Após essa última exemplificação esse texto é concluido, mostrando que tudo é passível de questionamentos e que a partir deles a ciência e a filosofia são construidas de modo a analisar diversas perspectivas e não apenas as que são confortáveis ou familiares para nós, como fez Carvalho. Portanto, a principal crítica para o escritor e sua obra citada está na falta de comprometimento com  a construção de questionamentos livres e edificantes, que compreendam a pluralidade e a reconstrução das questões humanas, até porque, a própria ciência natural, influenciadora dos ideais positivistas, também tem suas verdades transitórias e teses inconclusas. 

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