O
pensamento de Pierre Bourdieu pode ser sintetizado em uma perspectiva da
realidade como hipercomplexa. Dessa maneira, não existiria um tema que possuísse
uma maior importância, sendo todos complementares, mas ao mesmo tempo
concorrentes entre si. Cada “campo” seria um sistema com uma dinâmica de contradições
próprias inserido na sociedade capitalista. Assim, o campo econômico, jurídico,
político, psicológico, antropológico, sociológico, filosófico, entre tantos
outros, se mostrariam repletos de conflitos que desse modo definiriam a própria
sociedade. Além disso, cada campo possuiria um vocabulário e um conjunto de habitus próprios, o que significaria
determinadas disposições pertencentes e incorporadas ao indivíduo a partir de
sua conduta individual e de relações sociais.
Com
tal teoria, Bourdieu buscou definir o Direito como uma ciência, mas ao
contrário de Hans Kelsen – que acreditava que a ciência jurídica não poderia e
nem deveria ser maculada por outras ciências – tomou como imprescindível que
tais influências ocorressem. Apesar dessas interferências e de possuir pessoas
com diferentes habitus, o campo
jurídico possuiria uma certa autonomia relativa para se estabelecer e afirmar
suas próprias convicções. Contrário também aos preceitos de instrumentalismo (onde
o Direito estaria à serviço das classes dominantes) e de formalismo (autonomia
do Direito diante das pressões sociais), Bourdieu afirmou a lógica dupla da
ciência jurídica, que possuiria relações de forças específicas que encaminham
as lutas de concorrência somadas à uma lógica interna de obras que delimitam as
soluções jurídicas.
Dessa
maneira, o Direito impõe uma necessidade lógica e ao mesmo tempo ética. É nesse
contexto de entendimento de que o Direito não é absolutamente independente de
outras forças externas que pode se encaixar a discussão acerca do aborto de
anencéfalos. Por tanger campos para além do jurídico, como o biológico, o religioso
por se tratar de uma vida e até mesmo o psicológico pela preocupação com o
interior da mulher, a ADPF nº 54 tematizou o aborto de anencéfalos como um
descumprimento a preceito fundamental e buscando a criminalização do mesmo tópico.
A argumentação se moveu por pontos bastante distintos, passando pela laicidade
do Estado e pela fundamentação científica de que as chances de sobrevivência do
feto anencéfalo fora do útero são nulas, além de poder causar um transtorno
psicológico e também consequências físicas na mulher que poderiam nunca mais
ser revertidas. Apesar da ADPF ter sido desconsiderada e improcedente, diversos
temas ficaram de fora da discussão, como a liberdade e autonomia da mulher para
com seu corpo e sexualidade. A temática religiosa mais uma vez ficou em
destaque, demonstrando como ainda as decisões jurídicas são marcadas por uma
religiosidade e conservadorismo extremos, mesmo o Brasil sendo um Estado laico.
Vitória Schincariol Andrade
Turma XXXI - noturno
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