Total de visualizações de página (desde out/2009)

quinta-feira, 29 de julho de 2021

 

Rodopio no túmulo

    Emílio e a mãe estavam sentados na sala, em uma sexta-feira qualquer. Já haviam conversado acerca do trabalho dela, das despesas do veterinário do gato, das emoções conflitantes da mocidade, e parecia que nada mais restava. Eis que o telejornal ajudou: "meliante, de dezessete anos, roubou duas bicicletas, algumas latas de tinta, três pincéis. Foi morto na manhã seguinte, e especula-se que um dos donos dos comércios furtados tenha orquestrado o crime".

    Dona Michele foi rápida e elogiou quem quer que tivesse tido aquela ideia brilhante, pois um "de menor" não seria preso de jeito nenhum, e, se fosse, a "gentalha dos Direitos Humanos" daria um jeito de tirar da cadeia. Tinha que matar mesmo, e tirar a vida de um jeito doloroso, porque ninguém precisava de bicicletas, tintas e pincéis pra viver, de modo que o roubo era pura crueldade. Ela ainda deu pancadinhas nos ombros do filho, para instigá-lo a chacoalhar a cabeça em concordância. 

    Emílio, porém, respirou fundo, e perguntou à mãe o que aconteceria depois. Desapareceriam da cidade os ladrõezinhos? Despareceria o roubo, muitas vezes estatal, aos microempresários? Surgiria a paz mundial, ou, dada a escala, a municipal? Não. Ficaria uma mancha de sangue em certa rua, apareceria um ponto a mais de periculosidade perto de casa, estaria uma família vizinha partida ao meio. E só. 

    A mãe, já com sobrancelhas franzidas, perguntou ao moço se ele gostaria que o skate e os patins dele fossem levados, porque, se ele não visse problema, ela se livraria deles o quanto antes fosse possível.  Michele embasou-se ainda no esforço do comerciante para estabelecer-se, que ela conhecia bem, em razão de ter visto o próprio pai nessa luta. Ela terminou o discurso avisando que o avô estaria, naquele momento, "envergonhado das posições do neto, a revirar no túmulo". 

    O menino sabia que a mãe provia o sustento da casa, mas corria sangue sociológico nas veias dele. Então, Emílio perguntou se ela exigia notas fiscais em todos os comércios por que passava (inclusive na doceria da rua de baixo), se ela somente compartilhava memes com a autorização e menção do autor, se ela evitara o jogo do bicho durante toda a vida. Diante das negativas, o rapaz deixou o silêncio inquirir de qual modo ela gostaria de ser assassinada. 

    Ele perguntou se ela sabia que aquelas práticas eram criminosas, e ela disse que não. Emílio, depois, comentou que, talvez, o meliante não tivesse tido pais que lhe ensinassem a não roubar e que ofertassem a ele meios dignos de aquisição de bens, assim como ela não tivera quem ensinasse essas sutilezas legais. Talvez coubesse às escolas e aos membros da prefeitura explicar esse tipo de coisa, não? Talvez coubesse às forças estatais municipais, estaduais e federais disponibilizar centros de arte e esporte públicos, para que ninguém precisasse roubar nem pincéis, nem patins. Sem muito o que dizer, a mãe prometeu pensar no assunto e começou a procurar uma comédia romântica para amenizar os ares.  Longe dali, no interior de  um túmulo limpo e decorado com flores, um esqueleto rodopiou de orgulho, pois o esforço para melhorar a condição da renda da família, afinal, valera a pena. 

Maria Paula Aleixo Golrks - 1° semestre - Direito matutino 

    

Nenhum comentário:

Postar um comentário