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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

ADPF 54: Reflexão por um viés bourdieusiano.

  Pierre Bourdieu concebe a ciência jurídica como uma construção histórica complexa, a qual configura um ambiente de estruturação de moldes conceituais e metodológicos que regem a vida humana em sociedade. Nesse sentido, como exposto no capítulo oitavo de “O Poder Simbólico”, o campo jurídico revela a construção essencial de preceitos regentes da vida social em compromisso com a realidade dinâmica. Dessa forma, tendo em vista a ciência jurídica concebida como resultante de uma construção social e cultural ao longo da história, a decisão acerca da autorização do aborto de anencéfalos sem a necessidade de permissão judicial (ADPF 54) pode ser e é interpretada como um dos desfechos da construção histórica sustentadora do sistema jurídico.
  O sociólogo francês discorre profundamente acerca da neutralidade e universalidade vestidas pelo campo jurídico pela inter-relação de distintos “campos simbólicos” inseridos na sociedade. E tais preceitos são notáveis e elencam a decisão do Supremo Tribunal Federal ao serem expostos e ponderados o caráter universal da autonomia de decisão cabível às mulheres, a dimensão ilimitada da dignidade da pessoa humana e diversas garantias fundamentais constantes no topo hierárquico ocupado pela Constituição Federal em harmonia com dados científicos. Através de apontamentos, tais como a dignidade da pessoa humana e a tutela à vida- constantes na CF e na legislação penal, a descriminalização do aborto em caso de feto anencéfalo é defendida com base na universalização do direito de vontade autônoma da mulher diante da situação em que carregar um feto “inviável” acarreta riscos a sua própria integridade como genitora.
  Dessa maneira, vale ressaltar que a ADPF 54, analisada em 2012, insere-se em um contexto no qual uma lacuna da lei possibilitou que tal discussão, a qual engloba esferas civis e penais em subordinação ao texto constitucional, adentrasse o ambiente do Judiciário, tido como “guardião máximo da CF”. Desse modo, a discussão se arrasta para esferas superiores- sujeita ao “filtro regulador” do espaço dos possíveis, como trata Bourdieu- e busca colocar em cheque conflitos de direitos resultantes de distintas interpretações.
  Por conseguinte, mobilizar uma discussão detentora de importante temática contemporânea para ambientes do STF caracteriza e representa um envolvimento/embate entre a laicidade estatal e diversos âmbitos jurídicos os quais envolvem desde questões de saúde a discussões de gênero. E essa mobilização, também, coincide com a abordagem de Bourdieu acerca da construção do campo jurídico por teses antagonistas refletoras da realidade, as quais compõem uma lógica de decisão, de certa forma, resultante de ambiguidades pilares de uma ideal dinâmica característica do Direito.
  Assim, em comprovação à existência dos embates e antagonismos para a construção de um Direito “espelho” da dinâmica social apontada pelo sociólogo, são constantes os conflitos entre vieses de preceitos religiosos intrínsecos à estruturação do Direito brasileiro e o compromisso estatal com a laicidade e garantia de direitos. E são esses embates (levados em conta na decisão tomada na ADPF 54, em destaque às ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia) os responsáveis pela percepção e interpretação atual acerca do fenômeno jurídico simultaneamente com a submissão intransponível às previsões constitucionais- moldadas por preceitos pautados na humanização simultaneamente com a defesa da autonomia individual.
  Nesse sentido, os votos apresentados pelos ministros exemplificam um norteamento o qual Bourdieu trata como resultante de distintos habitus que compõem o campo jurídico. No contexto, 8 ministros votaram a favor da descriminalização da interrupção terapêutica e 2 votaram contra. E esses votos condizem com os habitus, as visões de mundo construídas pelos ministros ao decorrer de suas carreiras, atuações, estudos e também experiências pessoais inseridas em seu meio social atuante. Ou seja, na tratada situação de votação e decisão inserida no Judiciário, interpretações fundadas em distintos capitais culturais caracterizadores das inclinações dos ministros mostram-se sujeitas a influências provenientes tanto de uma lógica científica positiva, como de uma lógica normativa derivada da moral- as quais culminaram em uma decisão construída racionalmente em compromisso com garantias fundamentais.
  Logo, a não criminalização da prática de aborto em caso de feto anencéfalo deferida pelo STF caracteriza, fielmente, a realização de uma ponderação racional entre direitos, da qual se preponderam os direitos fundamentais de autonomia da mulher. E essa preponderância se deve à trajetória integradora de distintos campos relacionados à ordem jurídica, os quais contribuíram para configurar uma decisão construída historicamente, socialmente e culturalmente através do rompimento com obstáculos inseridos seja na laicidade estatal e até mesmo nas interpretações jurídicas.

Lorena Yumi Pistori Ynomoto. Direito Noturno 

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