“A força do direito:
elementos para uma sociologia do campo jurídico”, de Pierre
Bourdieu, é uma profunda análise acerca das dimensões do poder
jurídico em âmbito social. O autor estuda a fundo as metodologias
marxista, estruturalista e funcionalista para superá-las e
apresentar uma nova ótica acerca da força do direito. Uma das
principais ideias desenvolvidas é acerca do conceito de “campo”,
o qual entende como um espaço social que engendra recursos
específicos em sua dinâmica de funcionamento, culminando no fato de
que cada espaço exige uma dinâmica única. O conceito de campo para
Bourdieu não é determinado somente por relações de produção
(como entende o marxismo), mas engloba frações que possuem tanto
forças distintas quanto recursos distintos que engendram lutas,
combates e confrontos diferentes do que se chama de conflito de
classe, existindo também os campos intermediários e simbólicos.
É
justamente nesse conceito de campo simbólico que atuaria a força do
direito, e tomarei como exemplo disso a questão do aborto em caso de
feto anencéfalo, discutida, regularizada e aprovada pelo Supremo
Tribunal Federal em 2012. Consta nos artigos 124, 126 e 128 do Código
Penal vigente, clara proibição e criminalização da prática de
aborto em quaisquer circunstâncias, exceto as de gravidez advinda de
estupro e se não há outro meio de salvar a vida da gestante. A lei
assim positivada abre margem para uma discussão efervescente acerca
da temática, que por um lado teria a proteção à vida do feto
garantida pelo Código Penal, mas, por outro, a liberdade sexual e
reprodutiva, saúde, dignidade, autodeterminação e direitos
fundamentais da mulher, garantidos pela Constituição Federal. Os
ministros do STF foram colocados, portanto, no dever de ponderação
dessas normas para decidirem, então, qual das linhas interpretativas
da lei melhor dialogaria com os ideais de justiça socialmente
esperados.
É
fato que, nesse contexto, o poder simbólico dos juristas vem à
tona. O campo jurídico assim se apresenta como definidor de condutas
para fora dele, e, desta forma, o que é objeto de embate dentro de
tal esfera se irradia para toda a sociedade. O controle dessa
dinâmica seria, segundo Bourdieu, o lastreamento do poder dos
profissionais do direito no próprio campo jurídico, ou seja, tudo
aquilo que é feito por eles deve ser ancorado por uma justificativa
plausível, seja pela doutrina, moral ou jurisprudência. No caso
aqui discutido, observa-se que os votos dos ministros foram de
encontro tal exigência, já que, independentemente do posicionamento
do jurista, todos sustentaram suas argumentações em concordância
com a lei.
A
problematização dessa força do direito tem fundamento na medida em
que a força do direito se converta em violência simbólica à
parcela da sociedade envolvida em determinada decisão. No caso do
aborto, a questão que se coloca é que obrigar uma mulher a gestar
um feto anencefálico seria, isso sim, irreparável violência física
e psíquica. A decisão do STF, nesse aspecto, optou pela garantia do
direito das mulheres em serem privadas do sofrimento e agonia de se
gestar um ser que, comprovadamente pela ciência médica, ou nascerá
morto, ou não sobreviverá mais de poucos instantes após o parto.
Tal decisão estaria de acordo com o que Bourdieu define como
historicização da norma, aplicando esta a uma situação real e
histórica. Segundo o autor, o rigorismo racional impede que haja
soluções jurídicas para problemas incessantemente novos. Desta
maneira, os teóricos devem integrar ao sistema, através do que
define como “pôr em forma” – inserir aquilo que se configura
como demanda social no campo jurídico.
Finalizo
com a ênfase de que, no caso aqui discutido, não há como se falar
em usurpação do poder judiciário, já que este fundamentou sua
decisão na garantia de direitos fundamentais abarcados pela
legislação brasileira. Ademais, foi coerente na simbiose entre a
lógica positiva da ciência e a lógica normativa da moral, usando
do poder simbólico do campo jurídico para criar novas ignições
estratégicas e, consequentemente, parâmetros de luta social.
Carolina Juabre Camarinha.
1 ano. Direito matutino.
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