Total de visualizações de página (desde out/2009)

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Aborto de anencéfalos à luz de Bourdieu


“A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”, de Pierre Bourdieu, é uma profunda análise acerca das dimensões do poder jurídico em âmbito social. O autor estuda a fundo as metodologias marxista, estruturalista e funcionalista para superá-las e apresentar uma nova ótica acerca da força do direito. Uma das principais ideias desenvolvidas é acerca do conceito de “campo”, o qual entende como um espaço social que engendra recursos específicos em sua dinâmica de funcionamento, culminando no fato de que cada espaço exige uma dinâmica única. O conceito de campo para Bourdieu não é determinado somente por relações de produção (como entende o marxismo), mas engloba frações que possuem tanto forças distintas quanto recursos distintos que engendram lutas, combates e confrontos diferentes do que se chama de conflito de classe, existindo também os campos intermediários e simbólicos.
É justamente nesse conceito de campo simbólico que atuaria a força do direito, e tomarei como exemplo disso a questão do aborto em caso de feto anencéfalo, discutida, regularizada e aprovada pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. Consta nos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal vigente, clara proibição e criminalização da prática de aborto em quaisquer circunstâncias, exceto as de gravidez advinda de estupro e se não há outro meio de salvar a vida da gestante. A lei assim positivada abre margem para uma discussão efervescente acerca da temática, que por um lado teria a proteção à vida do feto garantida pelo Código Penal, mas, por outro, a liberdade sexual e reprodutiva, saúde, dignidade, autodeterminação e direitos fundamentais da mulher, garantidos pela Constituição Federal. Os ministros do STF foram colocados, portanto, no dever de ponderação dessas normas para decidirem, então, qual das linhas interpretativas da lei melhor dialogaria com os ideais de justiça socialmente esperados.
É fato que, nesse contexto, o poder simbólico dos juristas vem à tona. O campo jurídico assim se apresenta como definidor de condutas para fora dele, e, desta forma, o que é objeto de embate dentro de tal esfera se irradia para toda a sociedade. O controle dessa dinâmica seria, segundo Bourdieu, o lastreamento do poder dos profissionais do direito no próprio campo jurídico, ou seja, tudo aquilo que é feito por eles deve ser ancorado por uma justificativa plausível, seja pela doutrina, moral ou jurisprudência. No caso aqui discutido, observa-se que os votos dos ministros foram de encontro tal exigência, já que, independentemente do posicionamento do jurista, todos sustentaram suas argumentações em concordância com a lei.
A problematização dessa força do direito tem fundamento na medida em que a força do direito se converta em violência simbólica à parcela da sociedade envolvida em determinada decisão. No caso do aborto, a questão que se coloca é que obrigar uma mulher a gestar um feto anencefálico seria, isso sim, irreparável violência física e psíquica. A decisão do STF, nesse aspecto, optou pela garantia do direito das mulheres em serem privadas do sofrimento e agonia de se gestar um ser que, comprovadamente pela ciência médica, ou nascerá morto, ou não sobreviverá mais de poucos instantes após o parto. Tal decisão estaria de acordo com o que Bourdieu define como historicização da norma, aplicando esta a uma situação real e histórica. Segundo o autor, o rigorismo racional impede que haja soluções jurídicas para problemas incessantemente novos. Desta maneira, os teóricos devem integrar ao sistema, através do que define como “pôr em forma” – inserir aquilo que se configura como demanda social no campo jurídico.
Finalizo com a ênfase de que, no caso aqui discutido, não há como se falar em usurpação do poder judiciário, já que este fundamentou sua decisão na garantia de direitos fundamentais abarcados pela legislação brasileira. Ademais, foi coerente na simbiose entre a lógica positiva da ciência e a lógica normativa da moral, usando do poder simbólico do campo jurídico para criar novas ignições estratégicas e, consequentemente, parâmetros de luta social.

Carolina Juabre Camarinha.  
1 ano. Direito matutino.

Nenhum comentário:

Postar um comentário