É inegável que a propriedade sempre teve um valor simbólico no Brasil: desde a época da colonização portuguesa, as vastas terras férteis do país foram motivo de ambição européia e amplamente exploradas por poucos lusitanos, os quais geravam riquezas incalculáveis para Portugal. Séculos depois, o problema da desigualdade ainda persiste: com o surgimento do neoliberalismo, têm-se um recuo estatal e a implantação de um Direito ''soft'' como analisa o sociólogo Boaventura de Souza Santos, na medida em que o Estado passa a regular apenas as relações necessárias, negligenciando a proteção às minorias e abrindo espaço para a consolidação de um ''fascismo social'', o qual se caracteriza pela retirada de direitos e insatisfação popular.
A questão da propriedade, dessa forma, é inclusa nesse momento de retrocesso, uma vez que imensas porções de terra ficam concentradas nas mãos de ínfimos latifundiários enquanto milhares de famílias rurais são privadas do mínimo para se sustentar. Assim, cada vez de forma mais enfática, nascem os movimentos sociais visando a reforma agrária e a busca por uma justiça social: um dos mais conhecidos, indubitavelmente, é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que passa a ocupar propriedades improdutivas e que não apresentam uma ''função social''.
Essa é disposta no Art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal e revela a possível tutela jurídica em favor dos movimentos sociais, na medida em que objetiva a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução de desigualdades sociais e regionais. Nesse sentido, tratar da ''função social da propriedade'' foi decisivo para o julgado da Fazenda Primavera (SP) ocupada pelo MST no início dos anos 2000, no qual, baseando-se nos princípios fundamentais da Carta Magna e atendendo aos fins sociais, bem como o bem-comum previsto no Art. 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, os desembargadores vetaram a reintegração de posse por parte do proprietário do local.
O caso revela, além disso, uma esperança dos ''indignados'' no Direito que passam a incorporá-lo como estratégia de luta, fato observado por Boaventura, uma vez que esse adquire um caráter reconfigurante nas relações hegemônicas vigentes até então. Por conseguinte, entende-se que a ciência jurídica torna-se política por outros meios e contestação do Legislativo menos acessível para as minorias. Têm-se, assim, a promulgação da Constituição Federal de 1988 como prova dessa transição, pois trata-se de uma memória de luta sedimentada em Direito positivado, no qual o MST fundamenta suas reivindicações através de um constitucionalismo transformador.
Esse processo, ademais, é entendido por Boaventura de Souza Santos como uma Ecologia de Saberes dentro do Direito, na medida que ele expande sua atividade hermenêutica para o aspecto social, visando uma universalização resultante de um pluralismo jurídico que se baseia em uma legalidade cosmopolita mais desprendida das normas meramente positivadas e mais afins do direitos fundamentais, rompendo com a razão indolente que só pendia para o lado hegemônico dos indivíduos privilegiados representados por 1% da população.
O julgamento da Fazenda Primavera, dessa forma, revela, ainda que momentaneamente, o enfraquecimento de um Direito Abissal (mantém a desigualdade e o status quo dominante) em favor de um Direito Reconfigurante, como coloca Boaventura, esse sendo germinado dentro das Universidades e da criação de cada vez mais assessorias jurídicas populares, as quais auxiliam na construções de novas cognições por parte dos movimentos sociais. Essa transição, contudo, não exclui a importância da luta por direitos, uma vez que a ocupação de terra é fundamental para instigar o Direito a agir nesses casos de injustiça social, assim, mobilizar o direito em uma perspectiva contra hegemônica
é aplicar o direito dos 1% para os outros 99% como uma importante estratégia de enfrentamento da classe dominante.
Diante do supracitado, conclui-se, por fim, que o caso da Fazenda Primavera torna-se significativo pois demonstra que a existência da propriedade não será mais tolerada como meramente um privilégio da oligarquia rural: essas terras tornaram-se um dever social de quem as detém. Em caso de descumprimento dessa princípio, por conseguinte, cabe ao Direito intervir em favor das minorias.
LÍVIA MARINHO GOTO - TURMA XXXV- MATUTINO
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