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quinta-feira, 23 de julho de 2020

A Torre do Relógio



Pesadas nuvens enfeitavam toda a paisagem noturna, tornando a noite que outrora seria iluminada tanto pelas estrelas quanto pela brilhosa lua cheia, em o mais profundo breu, quebrado apenas por relâmpagos que, ocasionalmente, cortavam o céu. O retumbar dos trovões e o cair dos fartos pingos de chuva eram os únicos sons que se juntavam ao ritmado estalar e ranger dos mecanismo da torre do relógio de um vilarejo que estava a dormir. Dentro dela, uma minúscula engrenagem incomodava-se com o constante pingar de água que atingia a si e suas vizinhas, causado por uma grande goteira no teto da torre, ainda a ser descoberta pelos moradores da vila. Preocupada com a possibilidade de enferrujar e ser descartada, a engrenagem decide conversar com as outras ao seu redor.

“Irmãs, entramos na época de chuva a pouco mais de duas semanas e os humanos ainda não perceberam a infiltração que nos aflige a cada novo temporal. Temos de fazer algo a respeito, do contrário, a ferrugem nos consumirá!”

O pequeno discurso causou um burburinho entre as pequenas e médias engrenagens, atingidas pela goteira. Ouvia-se sussurros de concordância por toda parte e logo o burburinho tornou-se em uma grande agitação. 

“Um ultraje, vamos todas morrer!”

“Nos esforçamos para fazer as engrenagens maiores girarem e somos pagas assim!” 

“Já consigo ver uma mancha alaranjada começando a crescer em mim!” 

A pequena engrenagem, vendo que seu discurso havia surtido efeito, explicou seu plano:

“Nós precisamos todas parar de funcionar, assim, quando os humanos verem que os ponteiros pararam de se mexer, de certo irão subir para checar qual o problema e verão a goteira, salvando todas nós!” 

“Mas que absurdo”, disse a última e gigantesca engrenagem, responsável por girar o ponteiro dos minutos. “Se vocês travarem todo o sistema, o vilarejo não acordará no horário certo, atrasando e atrapalhando as inúmeras atividades importantes deles.” 

Mais uma vez as engrenagens se agitaram, aquelas que, tal qual a grande engrenagem, não eram atingidas pela chuva cochichavam: 

“Egoístas, sequer perguntaram se nós queríamos parar, estão planejando nos forçar a não cumprirmos nosso papel” 

“Com certeza só querem uma desculpa para não trabalhar, veja, nenhuma delas está enferrujada ainda” 

As pequenas e médias engrenagens que recebiam os respingos, intimidadas, calaram-se, exceto a instigadora da “revolução”.

“Se não o fizermos, morreremos! Um dia com os afazeres atrasados não prejudicará os humanos permanentemente, mas nós seremos para sempre descartadas se continuarmos a receber chuva.” 

“Ora, todas temos nosso prazo de validade, eu mesma tenho que girar o pesado ponteiro todo momento, você tem ideia do quanto isso desgasta meu metal? Ainda assim, não fico fazendo greves cada vez que quero uma manutenção.”

“O relógio irá parar de qualquer forma! A única diferença é que será mais tarde, quando todas nós estivermos podres demais para girar.” 

“Então trabalhe até apodrecer, esse é o seu dever. A ordem não pode ser perturbada por seus desejos egoístas” 

“Nós não queremos por um desejo egoísta, queremos parar pois há uma goteira sobre nossas cabeças.” 

“Tudo o que vejo é uma dúzia de engrenagens que se recusam a trabalhar mesmo estando em perfeito estado.” 

“É fácil dizer isso quando não é você em risco” 

“É assim que as coisas funcionam, eu giro o ponteiro e vocês me dão o impulso. Se eu decidisse que não iria mais cumprir meu papel, todo o relógio se tornaria inútil. Do mesmo modo que se vocês decidirem parar de girar ou que querem tornar-se majestosas engrenagens, como eu, o equilíbrio seria quebrado. A goteira é apenas um fardo com o qual vocês devem se conformar, seus caprichos não são mais importantes que o todo. Veja, eu possuo o fardo de mediar os conflitos de todas as engrenagens, por ser a maior daqui, mas ainda assim não reclamo ou fico arranjando desculpas. Talvez a goteira tenha aparecido acima de vocês justamente para mostrar à nós quem são as ameaças à nosso sistema, caso realmente enferrujem, tenho fé que serão trocadas por engrenagens que realmente compreendem a ordem das coisas. ”

Frustrada, a pequena engrenagem ficou em silêncio. Sozinha, ela não teria forças para parar toda a estrutura, e o diálogo com a tão sábia engrenagem maior mostrou-se infrutífero. Não havia mais o que ser feito.

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