Em um cenário dominado por uma hiper-concorrência,
flexibilização e financeirização, para que não fiquemos presos na “dialética
regulada” (confrontos restritos ao âmbito da lei, no sentido de criar
estruturas jurídico-políticas visando o processo de acumulação) é preciso que
aqueles setores mais vulneráveis da população, os que sofrem diretamente com a
instabilidade, sejam protegidos. Ou seja, caminhar para uma efetiva
emancipação. Será possível utilizar o direito como instrumento para inserção dos
menos favorecidos no contrato social? Os esforços despendidos nesse sentido serão
suficientes? Com base nos ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, talvez seja possível responder tais questionamentos.
A verdade é que vivenciamos uma ruptura do contrato
social, e, um dos motivos, é a grande influência que os interesses privados
exercem sobre o Estado, pressionando-o para que eles sejam os reguladores, forjando
uma corrosão no regime geral de valores. Nesse sentido, podemos destacar a
questão da educação pública no país, garantida constitucionalmente. Sobre a
qual o poder privado agiu de tal forma, que, hoje, encontra-se sucateada. Meus
pais, por exemplo, no século passado, estudaram em escolas públicas de
qualidade, nem se pensava em pagar pelo ensino. Enquanto no século XXI, meu
irmão, usufruindo do ensino oferecido pelo Estado, por certo, encontrará muitas
dificuldades, por exemplo, para “passar no vestibular”.
A partir desse exemplo um tanto superficial,
percebemos também como essas tranformações ocorrem de maneira rápida. Por
conseguinte, ficam evidentes as respostas insastisfatórias conferidas pelo Estado
a esse tipo de questão. Tendo em vista que os elementos forjados nessas
transformações passam a ter visibilidade, mostrando que precisam de contemplação
por parte do direito. Com efeito, a questão da educação é ainda mais
paradigmática quando se trata do ensino superior. Nesse sentido, o que vai
prevalecer: o direito de acesso a educação, o direito da isonomia em igualdade
de possibilidades ou a meritocracia, o direito privado dos contratos, e a
injustiça social?
É nesse contexto que se insere a discussão acerca da
adoção de ações afirmativas. Um simples e demorado olhar sobre a sociedade em
que vivemos é o bastante para perceber a existência da exclusão estrutural cujo
agravante é a instabilidade, sobretudo, no âmbito trabalhista permeado por
laços frouxos. Ao mesmo tempo, esse “sistema” encontra respaldo social
fortíssimo, atuante sob a forma da profilaxia: um discurso, basicamente,
neoliberal que contribui para a manutenção da exclusão. Por se encontrar
totalmente difusa, difícil se torna o combate. A partir disso, fico imaginando
a situação dos negros, indivíduos historicamente vitimizados pelo “apartheid
social”. Em um país onde mal tivemos a consecução dos ideiais absolutistas, no
que diz respeito à inserção dos ex-escravos na sociedade. Além
de sofrerem com um racismo institucionalizado; serem recorrentemente excluídos
do mercado de trabalho e do ensino em geral, os negros também vivenciam uma desigualdade de cunho
racial. O cenário atual é agravado por recorrente manifestações profiláticas: “por
que reservar vagas para indíviduos que não têm capacidade de fazer uma boa
prova de vestibular?” “Por que eu tenho que colocar em risco a minha vaga na
lista dos aprovados se eu não fui responsável pela escravidão?”
Isso se encontra de tal forma naturalizado que um dos
temas clássicos de controle de constitucionalidade são as ações afirmativas: recentemente,
o partido Democratas ajuizou uma arguição (ADPF 186) na qual condena a
Universidade de Brasília (UnB) pela adoção de cotas no processo seletivo,
alegando ser inconstitucional. Ao meu ver, muitos dos argumentos utilizados se
aproximam dessa ideia de profilaxia social, no sentido de manejar recusos
jurídicos com vistas de manter os privilégios da classe hegemônica, a qual tem
condições de custear um bom ensino particular e que se encontra ultra-incluída
(proteger o protegido). De forma que acaba se distanciando de uma pauta de
direitos humanos, sobretudo, no que diz respeito à exigência contemporânea de
igualdade substantiva.
Analisando a trajetória histórica de direitos humanos
percebemos um longo caminho percorrido até que o sujeito de direito passasse a
ser visto em sua especificidade e concreticidade. Com efeito, somente na
segunda metade do século XX, percebeu-se a necessidade de conferir, a determinados
grupos, uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria
vulnerabilidade. Surge então ao lado do sistema geral, um sistema especial de
proteção. O qual prevê a adoção de ações afirmativas como uma forma de promover
o alcance da igualdade substantiva e assim assegurar a diversidade e a
pluralidade social. Entendendo que a proibição da exclusão, por si só, não é
medida suficiente para o alcance da inclusão de grupos que sofreram e sofrem um
consistente padrão de violência e discriminação social. O Brasil, equanto
Estado-parte da comunidade internacional, também assume essa responsabilidade e
tem tomado medias nesse sentido.
Partindo desse entendimento, a ADPF-186 foi julgada,
majoritariamente, improcedente. Mostrando que a jurisprudência brasileira
entende que as cotas são medidas não apenas legítimas, mas essenciais para
minimizar tanto os efeitos desse fascismo social cujo eixo é a prerrogativa dos
interesses privados produtores da estratificação social quanto para promover o
alcance da igualdade substancial. A leitura do voto do ministro Lewandowski
demonstra que o Direito foi utilizado como instrumento para promover a inclusão
no contrato social. Com efeito, a afirmação da constitucionalidade do emprego
das cotas pela universidade pública constitui uma boa forma de minimizar os
processos de exclusão. Tendo em vista que as universidades são locais ideais
para a desmitificação dos preconceitos raciais, fundamentais para a formação de
bons profissionais e de futuros líderes e dirigentes sociais. Um local onde a convivência com o
diferente traz benefícios e o debate é engrandecedor. E também onde é possível
aprender novas formas de enxergar o mundo e, quem sabe, contribuir para o combate
efetivo do facismo social.
Diante disso percebemos que, apesar das cotas e das
ações afirmativas não serem a solução para todos os problemas, são fundamentais
e enquanto medidas transitórias deixarão de ser necessárias “na medida em que
essas distorções históricas forem corrigidas e a representação dos negros e
demais excluídos nas esferas públicas e privadas de poder atenda ao que se
contém no princípio constitucional da isonomia”. Importante saliantar,
nesse sentido, que essa não é a única
possibilidade de luta, outras podem ser lançadas.
Yasmin Commar Curia
Direito- Noturno
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