Em
tempos em que se discute a politização do judiciário, é fundamental resgatar as
ideias de Boaventura de Sousa Santos acerca do caráter emancipatório do
direito. Os que criticam a atuação do Supremo Tribunal Federal (e de outras
instâncias do judiciário) e a batizam de “ativismo judicial” alegam que esse
poder esta deslizando sobre competências que pertencem ao legislativo,
considerando a tripartição de poderes que rege o país; há, entretanto, aqueles
que defendem essa atuação, levando as últimas consequências o princípio
constitucional que o STF é o “guardião da Constituição”.
Não
usar o direito como ferramenta de emancipação seria ignorar seu caráter
transformador; por outro lado, também não se pode ignorar seu aspecto
conservador, já que, em certa medida, um de seus objetivos é a manutenção das
instituições. De qualquer maneira, a atuação do judiciário não pode ser vista
como a única forma de empregar o direito como ferramenta emancipatória –
exemplo disso são as ações afirmativas.
É
bem verdade que as eleições de 2014 formaram um legislativo excepcionalmente
conservador, mas isso não muda o fato que lá trabalham os representantes do
povo (apesar da representação comprometida que enxergamos) e um erro não justifica
o outro: a resposta adequada para os problemas seria a reforma política de fato
(não a que foi proposta no início do ano pelo Congresso), e não a atuação
excessiva do judiciário. A partir do momento que o STF propõe-se a interpretar
leis, ele retira a obrigação dos parlamentares de debaterem assuntos polêmicos
(como as cotas raciais, a descriminalização da maconha e o financiamento de
campanhas eleitorais) e, portanto, exaure a cidadania que pertence aos
cidadãos.
A
fim de alcançar um direito emancipatório, como propõe Boaventura de Sousa
Santos, além de buscar soluções pertinentes a nossa realidade (e não mais
remeter apenas as teorias de séculos passados), é fundamental que nos voltemos
para as ações afirmativas – e não apelemos sempre para o poder judiciário. Na
ADPF 186, o partido Democratas pede que o STF julgue a constitucionalidade das
cotas raciais adotadas pela Universidade de Brasília.
Acertadamente,
o STF decide pela constitucionalidade das cotas raciais, corroborando om
derrubada do “fascismo territorial” teorizado por Boaventura, situação na qual
as elites ocupam certos espaços que tornam-se inalcançáveis aos grupos que
vivem a margem desses “privilégios” – que, no caso do educação, é, na verdade,
um direito. O Supremo entendeu que as cotas raciais não ferem a igualdade
formal, como alega o DEM, mas, pelo contrário, “prestigia o princípio da
igualdade material”.
Boaventura
trata das revoluções que sucedem entre o final do século XIX e o decorrer do
século XX e que colocam em permanente confrontação duas perspectivas da
dialética regulada: a regulação social e emancipação social. Num contexto que
surgem os estados nacionais, nasce também a necessidade de frear vários
aspectos do enorme fervilhamento social característico do período, ao mesmo tempo
que aqueles não contemplados plenamente pelos avanços do Estado Liberal lutam
por emancipação.
A
questão das cotas raciais guarda em seu cerne o mesmo debate: de um lado, há a
população negra que há séculos sofre com o racismo e com a exclusão independentemente
de questões de classe (“A discriminação racial ou ética ocorre em conjunção com
a discriminação de classe, mas não pode ser reduzida a esta e deve ser objeto
de medidas específicas”, citando Boaventura); de outro, há uma elite que vê na
universidade pública seu território particular e que enseja a manutenção das estruturas
de poder e dominação.
A
meritocracia e a igualdade formal são frequentemente invocadas por aqueles que
se opõem as cotas; parece, entretanto, bastante perverso usar esses argumentos
em contexto de tamanha diversidade. Para que a meritocracia – e a democracia –
funcionem, pressupõe-se um mínimo de igualdade de oportunidades. A democracia não
exige que todos sejam completamente iguais, mas que sejam tratados
desigualmente em suas desigualdades.
Heloisa Areias
1º ano de Direito - Diurno
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