Historicamente, a
dialética do embate politico-jurídico entre regulação social e emancipação
social apresentava-se como parte intrínseca do Direito. Com a consolidação do capitalismo
e da classe burguesa, contudo, essa configuração foi alterada, dissociando-se a
possibilidade de um aspecto emancipatório do Direito, em benefício da regulação
social. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos analisa, em seu texto “Poderá o Direito ser emancipatório?”, as
consequências pós-modernas que o Direito pautado na hegemonia traduz na
sociedade, especificamente no que se refere à crise do Contrato Social.
O Direito baseado na
regulação social sustenta-se primariamente pelo mercado. Para o autor, esse
predomínio de valores econômicos em detrimento de valores sociais provoca o
surgimento e crescimento de uma subclasse de excluídos, denominada “Terceira
Classe Inferior”, que constitui um grupo social com pouca ou nenhuma chance de
inclusão, constantemente vítimas de um fascismo social, manifestado através da
perpetuação da exclusão. Para Santos, o fascismo social estratifica a sociedade
civil em três: sociedade civil íntima, constituída
por aqueles totalmente contemplados pelo Direito e pelo Estado; sociedade civil estranha, caracterizada
por uma inclusão parcial; e sociedade incivil,
constituída por aqueles totalmente excluídos socialmente. A Terceira Classe
Inferior, nesse sentido, configura uma sociedade civil incivil. Como o próprio
nome já diz, esse é o círculo daqueles cujas civilidades lhe são negadas,
atirando-os a um estado natural, onde nem mesmo seus direitos são garantidos.
A partir dessa classificação,
Santos define a ideia de um cosmopolitismo subalterno, ou seja, um conjunto de
realidades plurais dos segmentos excluídos, visando lutar contra a exclusão
decorrente da mundialização do capital. O Direito que pretende ser emancipatório,
então, deve ser baseado nesse cosmopolitismo subalterno para, de fato, evitar a
reprodução da globalização hegemônica em seus preceitos jurídicos.
A incorporação de
cotas raciais e sociais nas universidades públicas do Brasil é um grande exemplo
do Direito emancipatório: são ações afirmativas que visam diminuir gradativamente
a desigualdade entre brancos e negros no país. Isso porque o acesso à
universidade no país segue uma visão conservadora e meritocrática, pautada na
lógica do capital. Lógica essa que ignora todo o passado de opressão e
marginalização da população negra brasileira, que até os dias de hoje
encontram-se à margem do Direito e de seus direitos. Lógica essa, também, que
perpetua o mito da democracia racial no país, desconsiderando toda a dívida
histórica para com os negros.
O Direito brasileiro
tem sido predominantemente um instrumento hegemônico, e o caso Pinheirinhos é o
maior exemplo disso no país. Por isso que as reações conservadoras não tardam a
chegar quando as demandas dos movimentos sociais são minimamente incorporadas.
No caso das cotas raciais, o Partido dos Democratas (DEM), em 2009, entrou com
uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), contra as cotas
raciais da Universidade de Brasília, que reserva 20% do total das vagas
oferecidas a estudantes negros. Para o DEM, a medida seria inconstitucional por
atentar contra o Princípio da Isonomia presente na Constituição Federal,
ignorando novamente todo o preconceito ainda existente e todo o passado de
opressão da população negra. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal julgou o
pedido improcedente.
Segundo a
estratificação proposta por Boaventura de Sousa Santos, as cotas raciais e sociais
constituem uma forma de transição de sociedade incivil para sociedade civil
estranha, onde apesar de haver inclusão, ela ainda é parcial. Isso porque as
cotas, como ações afirmativas, são medidas paliativas, ou seja, não podem ser
implantadas sozinhas. As cotas por si só não garantem que a população negra
excluída conquiste lugar na sociedade civil íntima, tendo seus direitos
verdadeiramente respeitados e contemplados, como definida por Santos. Nesse
sentido, é fundamental ressaltar a necessidade de implantação de outras políticas
públicas, que atuem no contra fluxo do conservadorismo e da elitização da
justiça.
Assim se manifesta a importância
da instrumentalização do Direito como emancipatório: tem-se, dessa forma, uma
ferramenta capaz de contestar os rumos que a lógica do mercado capitalista trouxe
ao Contrato Social, e de buscar a superação das barreiras hierárquicas impostas
à sociedade civil, tornando-a verdadeiramente mais igualitária.
Lívia Armentano Sargi
1º ano – Diurno
Aula 2.1
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