Um
das maiores polêmicas étnicas do Brasil foi a instituição de cotas raciais nas
universidades públicas visando o aumento do número de alunos negros, visto que
este era quase inexistente dada a elitização de tais universidades. Tal
polêmica foi levada ao âmbito do Direito com o ajuizamento de ADPF pelo partido
DEM para que o STF decidisse sobre a constitucionalidade de tais cotas que,
segundo a visão do partido, promoveriam desigualdade racial e seriam, portanto,
racistas, ferindo a dignidade da pessoa humana e inúmeros outros preceitos
fundamentais da Constituição. O Supremo, não obstante, negou provimento à ação.
A
reação do partido de ajuizar tal ação era previsível: à medida que as cotas
incorporam demandas dos movimentos sociais contra a vontade da classe
hegemônica a reação desta de buscar instrumentalizar o Direito a seu favor é expectável.
O Direito quase sempre foi instrumento da classe hegemônica, o caso
Pinheirinhos é grande prova disso. Mas, como defendido por Boaventura de Sousa
Santos, a eterna tensão entre emancipação social e regulação social acaba
forçando a classe hegemônica, que impõe a regulação social, a acatar certas
demandas dos grupos que lutam pela emancipação e, neste caso, o Direito provou
ser potencial instrumento desta luta pela emancipação à medida que atuou para
transformar a realidade social, transformação esta necessária, já que os negros
são praticamente metade da população.
A
desigualdade histórica sofrida pelos negros, o racismo impregnado veladamente
em nossa sociedade, assim como o racismo institucionalizado, presente no
próprio Estado como demonstra a violência policial contra os negros e a ação de
juízes que proibiram os “Rolezinhos”, invasão da periferia negra nos ambientes da elite branca, são indubitáveis, embora o partido DEM,
um dos mais conservadores do país, tente demonstrar o contrário. Impera em
nossa sociedade a ideia de que é papel social do negro lidar com trabalhos de
valores econômicos considerados inferiores segundo a lógica do capital, o que
explica a revolta causada nas classes sociais mais altas com a instituição de
cotas que formarão médicos negros, que qualificarão profissionalmente esta
classe marginalizada.
Esta
é, aliás, uma das maiores importâncias das cotas: o combate contínuo ao
preconceito ao igualar brancos e negros, ao profissionalizá-los e dar-lhes
acesso a toda uma série de ambientes e cargos a que não tinham acesso,
mostrando à sociedade a sua capacidade. E o fato das cotas terem-nos levados à universidade, assim como as políticas de permanência, não diminui em nada o
mérito de suas conquistas sociais, porque o vestibular nunca mediu
meritocracia, medindo apenas o investimento; a lógica do vestibular atualmente
é justamente a lógica de mercado, que ao regular tudo e todos gera o que
Boaventura chama de Fascismo Social: não importa se os candidatos partiram do
mesmo ponto, importa apenas o resultado destes, presumindo-se que o melhor
colocado seria o mais capaz e desconsiderando todos os obstáculos que são
impostos, até mesmo por parte do Estado, aos negros nesse processo que é a
conquista de uma vaga numa universidade pública.
Mais
do que uma vantagem aos alunos negros as cotas são também vantagem aos alunos
brancos que terão oportunidade de conviver com as diferenças e, destarte,
crescer como indivíduos. E dar essa vantagem aos negros é justamente fazer
vigorar a igualdade, visto que a isonomia, no conceito de Rui Barbosa, “é aquinhoar os iguais na
medida de sua igualdade e aquinhoar os desiguais na medida de sua desigualdade”.
Conclui-se,
deste modo, ressaltando a importância histórica da decisão do STF que julgou
improcedente o pedido de inconstitucionalidade das cotas, instrumentalizando o
Direito a favor da emancipação social, o que não seria possível se os operadores
do Direito estivessem a favor da classe hegemônica, mostrando a importância da
diversidade nas universidades, de forma a combater a elitização e, assim, a
instrumentalização do Direito para fins de regulação social: dá-se origem a uma
legalidade cosmopolita que admite a existência de outros valores que não os
dominantes, que não a lógica de mercado.
Dana Rocha Silveira - Direito Noturno
Dana Rocha Silveira - Direito Noturno
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