Primeiramente, cabe explicitar
que Pierre Bourdieu, sociólogo contemporâneo, possuía uma visão moderna
acerca da sociedade, enxergando o Direito para além dos paradigmas habituais - estudou
o campo jurídico por meio de elementos ainda não explorados por sociólogos
anteriores. Nesse sentido, acreditava que tal instrumento devia considerar as
complexidades e as heterogeneidades das sociedades, de modo a solucionar as
disputas existentes em seu interior com o maior grau de justiça possível –
visava a conciliação de interesses. Assim, é válido lembrar, também, alguns
conceitos criados por esse, como a ideia de espaço dos possíveis, a qual é
vista como espaços sociais multidimensionais divididos em campos autônomos
subordinados às relações de produções econômicas, habitus, que é a
predisposição dos indivíduos a agirem de determinadas formas, e poder
simbólico, que se refere à autoridade que uma classe detém em relação as demais.
Posto isso, cabe ressaltar que, no que tange à
análise da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, a qual
garantiu, no Brasil, a interrupção terapêutica da gestação de fetos
anencefálicos – os quais têm chances mínimas de sobrevivência -, a questão da complexidade e heterogeneidade das sociedades e os conceitos criados por tal foram, notadamente, usufruídos. Para isso, basta
analisar os pontos favoráveis à ADPF, os quais funcionam como um habitus de
caráter liberal e progressista - uma vez que colocavam a saúde da mulher e o
trauma de perder um filho que viveria por semanas ou meses, graças à
anencefalia, como fatores primordiais - e os contrapontos desfavoráveis, os
quais permeiam um habitus de caráter religioso - já que fatores religiosos faziam
com que a mulher não pudesse abortar seu feto. Nesse cenário, haviam dois
espaços dos possíveis, cada um com seu habitus. Frente a isso, o Supremo Tribunal Federal encarou como legal a interrupção terapêutica da
gestação de fetos anencefálicos, levando em conta, portanto, o direito à saúde
e à liberdade de escolha da mulher. Ademais, considerou, ainda, o direito às
crenças religiosas e pessoais de cada um - a mulher gestante de um feto anencefálico poderia optar, a
partir de suas crenças, abortar ou não -, ou seja, interesses diversos foram
conciliados de modo a não prejudicar o maior número de pessoas possível.
Assim, nota-se que tal decisão
estava de acordo com o que Pierre Bourdieu almejava e acreditava, visto que
ambos os lados - defensores ou não da ADPF - tiveram suas perspectivas expostas,
o que denota a preocupação do STF para com a heterogeneidade da sociedade e com o equilíbrio de interesses - além
do fato de muitos conceitos criados pelo sociólogo terem sido utilizados no
decorrer do processo. Por fim, considerando que Bourdieu acreditava que o Direito
deveria resistir perante ao instrumentalismo, não devendo servir às classes
dominantes detentoras do poder simbólico – nesse caso, a classe possuidora do
habitus religioso -, a decisão do STF retratou, mais uma vez, os princípios de
tal sociólogo.
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