Émile Durkheim foi um sociólogo do século XIX e início do XX responsável pela criação de um método sociológico de observação dos fenômenos socais, não à toa sendo popularmente conhecido como o pai da Sociologia. A partir da leitura de seus textos, em especial "As regras do Método Sociológico", a contemporânea "cultura do cancelamento" pode ser observado sob o prisma do fato social e da ideia de solidariedade do autor.
A cultura do cancelamento, assim denominada, surgiu há alguns anos como meio de expulsar ou ejetar alguém de uma determinada posição social ou de fama em razão de conteúdos questionáveis ou problemáticos aos olhos de um determinado setor social. O principal grupo social que compõe essa cultura é a do extremo politicamente correto e a da militância das minorias ou grupos apoiadores dessas minorias. A intenção é a de diminuir as vozes opressoras e instigar o surgimento de um maior vozerio das minorias, principalmente nas redes sociais como o Twitter.
Sabe-se que o fato social é um fenômeno social coercitivo, externo e geral, por definição. Assim, o modo pela qual essa cultura do cancelamento se instalou e propagou seu método de punição concernem justamente a raiz desse conceito e de sua aplicabilidade. Pois, considerando-se o cancelamento como todo aquele evento social de origem coletiva, geralmente via redes sociais, que decide pela supressão, julgamento e linchamento virtual e verbal do indivíduo ou de uma determinada atitude deste, denota logo de início as 3 características do fato social expostas: a coercitividade no momento da repulsa e do silenciamento, a externalidade por ser um fenômeno que advém de um plano de fora do indivíduo e de uma determinada parcela de uma sociedade e a generalidade por abranger, possivelmente, todos os indivíduos que se desviarem de uma pretensa moral estabelecida de forma meramente subjetiva.
Com o objetivo de reprimir e punir os indivíduos que adotam condutas ou opiniões não bem aceitas por esse determinado nicho social, esta parcela social pressiona, violenta e julga de forma inadequada e imatura o determinado caso, embasada em razões puramente subjetivas e sem sequer um verdadeiro consenso social ou moral sobre o assunto. Além de se distanciarem da ciência jurídica e da atividade filosófica da discussão e do compartilhamento de ideias. A questão é que essa cultura, muito embora efetiva em relação a alguns casos, possui várias problemáticas em várias ópticas diferentes, contudo, vou me ater a uma análise "durkheiniana" da problemática.
O exercício do cancelamento, ao contrário do que os praticantes esperam, leva a uma desordem social e a um completo desequilíbrio ideológico e político, visto que ocorre uma polarização política e social extravagante que pode ser traduzida em uma verdadeira guerra social entre os canceladores, do politicamente correto, e os reacionários. Nessa medida, podemos utilizar a questão da solidariedade de Durkheim para observar o seguinte: como o cancelamento não conscientiza e não conversa, pelo contrário, ele apenas reprime e oprime, o indivíduo ou grupo de pessoas canceladas ou julgadas desenvolve um sentimento de raiva e repúdio ao grupo opressor, o que portanto provoca a diminuição da solidariedade positiva e social.
Por qual razão um indivíduo vai abrir mão de sua consciência individual em prol de uma consciência coletiva quando ao expor suas opiniões, embora problemáticas, é altamente rechaçado e condenado? Utilizo como exemplo prático a relação entre o cancelamento e a eleição do Bolsonaro em 2018: um grande grupo de conservadores e reacionários brasileiros estava sendo cancelado e rechaçado pelo politicamente correto, muito embora as opiniões e comentários fossem realmente preconceituosos e problemáticos, o que então gerou um sentimento coletivo desse grupo de devolver, na mesma moeda, aquela repressão sofrida. Resultado, Bolsonaro foi eleito justamente com um discurso contra o cancelamento e tão repressivo quanto a tentativa de silenciamento e falta de debate efetuado pelo extremo politicamente correto cancelador. Reitero duas coisas: Bolsonaro e seus eleitores de fato cometem atrocidades sociais e preconceituosas, porém isso não exclui a atitude imatura e de desserviço social e político do cancelamento; não estou dizendo que o cancelamento foi a única razão para a eleição do Bolsonaro, mas um fator social influenciador do ocorrido e do como podemos refletir nisso para evitarmos outra catástrofe política.
A relação desse episódio com a solidariedade Durkheim remete justamente ao desequilíbrio social e político desenvolvido pela ação do "cancelar" algúem, visto que essa prática desorienta o suposto rumo social de se organizar aliado a um equilíbrio e coesão social, visando atingir a solidariedade mecânica e uma consciência coletiva citadas pelo autor. Nessa medida, o "cancelamento", mais do que um fato social, é também uma aberração aos olhos da solidariedade social de Durkheim.
Ainda me estendo e escrevo que a cultura do cancelamento é uma prisão social na história do pecado original e do mito cristão, já que elimina a possibilidade de erro e equívoco do ser humano e acentua o discurso de um tipo de punição eterna ou muito severa, lembrando até mesmo o Deus do antigo testamento. Isso porque uma publicação ou um comentário equivocado ou problemático é punido por uma onda de xingamentos, invasões do espaço privado e ataques a intimidade do indivíduo de uma forma desproporcional e hipócrita, pois os mesmos algozes cometem ou cometeram os mesmos tipos de comentários.
João Baldi - 1º ano de direito matutino
Nenhum comentário:
Postar um comentário