A partir do avanço do neoliberalismo e do recorrente abandono do bem-estar social na contemporaneidade, que resultaram na vulnerabilidade e na fragilidade dos indivíduos, o jurista francês Antoine Garapon aponta o surgimento da “magistratura do sujeito”, fenômeno que se caracteriza pelo resgate às pessoas - que se encontram desamparadas pelas políticas sociais - proporcionado pelo Estado e seu sistema de justiça. Através disso, ainda de acordo com Garapon, ocorre a judicialização, já que, quando acionados, os tribunais do poder Judiciário se vêem na posição de protagonistas, servindo como meios de resoluções de conflitos que vão além dos quais deviam lhes competir, justamente por terem que suprimir as omissões das vias convencionais.
Assim, num cenário em que as magistraturas tradicionais, como, dentre outros, a própria família, a religião e a moral, se distanciam dos sujeitos, estes buscam a magistratura do Direito para auxiliá-los em suas demandas. Nesse sentido, por exemplo, em detrimento da falta de suporte oferecida pelo sistema de saúde, numa ação de obrigação de fazer, julgada pelo juiz Fernando Antônio de Lima em 2013 e movida em desfavor da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, a parte autora, uma mulher transexual, pediu, em tutela antecipada, pela cirurgia de transgenitalização e pela alteração do seu nome e sexo - modificando de masculino para feminino - em seus documentos e registro civil.
Além de toda a dor, preconceito e constrangimento, a requerente passou por tratamentos psicológicos e psiquiátricos por anos, que asseguraram a sua transexualidade e disposição em realizar a cirurgia de mudança de sexo, tendo em vista todo o seu sofrimento, envolvendo depressão e pensamentos suicidas, e a clara identificação com o gênero feminino - tanto que foi submetida à utilização de hormônios. Com base nisso, na jurisprudência e na legislação, principalmente nos princípios constitucionais de identidade, liberdade, igualdade, privacidade, intimidade, dignidade da pessoa humana e proporcionalidade - este último que enseja a proibição da proteção insuficiente, ligada às omissões inconstitucionais -, a tutela antecipada foi julgada procedente e o juiz concluiu, brilhantemente, que o Estado deveria arcar com as custas e a realização de todos os pedidos requeridos, de forma a amparar e assegurar os direitos da autora.
Pautado nesses pressupostos, fica evidente a importância dada à figura do Judiciário no contexto atual, que tem o dever de atender aos chamados da população e é capaz de obrigar os demais entes a agirem das formas cabíveis, mesmo que isso signifique expandir sua área de atuação. Este fato, no entanto, não deslegitima a democracia, tendo em vista que, por mais que as consequências práticas derivem das decisões dos tribunais, as questões, como a supracitada, são trazidas pelos próprios sujeitos - que, por sua vez, além disso, são representados pelas pessoas que tomam tais decisões e que criam as legislações.
Ana Eliza Pereira Monteiro - 2° ano Direito - Matutino
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