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sábado, 21 de agosto de 2021

Uma interpretação materialista de uma realidade etérea

 O trabalho de Jean começa cedo. Às 6 está de pé. Precisa correr porque o ônibus passa pontualmente as 6:50, se perder esse, o próximo é só às 8. Levanta sem muito ânimo, cansado do dia anterior. Chegou em casa por volta da uma da manhã. Mas Jean não reclama.   

Trabalha de segunda a sábado e de domingo faz entrega de comida por aplicativo. “Dá pra pelo menos pagar as contas”, ele diz, mas o sorriso no seu rosto não dura muito tempo. Um breve instante e seu semblante desaba e revela o cansaço, acentuando as olheiras que pesam sobre as bochechas magras.  

-Não é o ideal, né? Mas é desse jeito que eu consigo pagar a escola da Nicole, minha menor. Eu e a mãe dela achamos melhor colocar em particular, essas escolas públicas só tem professor vagabundo, não quer trabalhar. - respondeu Jean quando perguntado sobre sua situação de trabalho. - E vou te falar uma coisa, esses funcionários públicos são um câncer do nosso Brasil, por isso tratei logo de pagar uma escola pra Nicole, vai estudar e se Deus quiser vai ser alguém na vida. 

-Eu trabalhava em fábrica, né? Era contratado pra ajudar na parte de montagem, mas aí teve corte de gastos e eu fui demitido, mas vou falar pra você, eu achei foi BOM! Eu tava acomodado demais, tinha era medo de me arriscar. A verdade é que hoje em dia tem muito “mimimi”. Bando de gente que não quer trabalhar e fica reclamando.  

Jean tinha convicção do que estava falando, acreditava piamente na meritocracia, admirava grandes empresários e odiava com toda a força funcionários públicos, e claro, o comunismo. Se dizia “neoliberal”, a perda de direitos pra ele, era necessária. A economia precisava funcionar. 

Jean teve que sair no meio da entrevista, um colega que entregava comida com ele aos domingos tinha tido um AVC. O homem até tinha avisado a empresa de entrega que se sentia mal, mas ela só respondeu que era necessário desativar o aplicativo, pra não atrasar as entregas. 

 Morreu. Após aguardar durante duas horas por socorro.  

-Jade Cocatto, TURMA 38, noturno

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