Na
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, proposta pelo
Partido Popular Socialista (PPS), o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou
mais detidamente os mandamentos constitucionais de punição em razão de discriminação atentatória aos direitos e
liberdades fundamentais (art. 5º, XLI, CF) e da prática de racismo em virtude
da orientação sexual ou da identidade de gênero da pessoa (art. 5º, XLII, CF). Em
junho de 2019, a maioria dos ministros julgou a ação procedente, com repercussão
geral e efeito vinculante.
A
decisão pela procedência da ADO implicou consequências importantes para o
tratamento da questão. Em primeiro lugar, em virtude do próprio caráter da ADO
como instrumento de concretização de direitos fundamentais, o Poder Legislativo
pátrio foi notificado sobre a injustificável mora inconstitucional referente a
falta de edição de norma ordinária que regulamente as determinações
constitucionais do art. 5º, incisos XLI e XLII, para a proteção do grupo
LGBTI+. Em segundo lugar, o STF enquadrou, pelo princípio da interpretação
conforme, as práticas de homofobia e transfobia no conceito de racismo previsto
na Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou
de cor, até que o Congresso Nacional edite norma que implemente as
determinações constitucionais supracitadas.
Embora
a prática do crime de racismo para a grande parte da população esteja mais
relacionada a questões biológicas e fenotípicas, o STF empregou a concepção de
racismo social para justificar a criminalização de práticas homofóbicas e
transfóbicas como racismo. Segundo o acórdão, o racismo social
projeta-se para além
de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto
manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada
pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico,
à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da
dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável
(LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em
uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados
à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de
odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva
situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito. (STF, 2019)
Como
o pleito da comunidade LGBTI+ suscitou acirradas divergências de grupos sociais
conservadores, a decisão em tela também estabeleceu a ponderação para
compatibilizar a repressão penal à homotransfobia e o exercício do direito à
liberdade religiosa. Desse modo, assegurou-se aos ministros e fiéis de qualquer
denominação confessional o direito pregar, divulgar, ensinar sua orientação
doutrinária, desde que não incitem a discriminação, a hostilidade ou a
violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade
de gênero, atos que configurariam discurso de ódio.
A
paradigmática decisão do STF sobre a questão da homofobia enquadra-se no
contexto da ascendência do poder dos Tribunais Constitucionais e Tribunais
Superiores observada, em diversos países do mundo, a partir da segunda metade
do século XX. Verifica-se que o aumento do protagonismo do Poder Judiciário,
que tem atuado de forma contramajoritária para decidir temas sociais sensíveis,
suscita posicionamentos antagônicos tanto entre os cidadãos quanto entre os
próprios operadores do direito. Esse processo de empoderamento dos tribunais
também não tem passado despercebido ao meio acadêmico, que, progressivamente,
tem avançado nas pesquisas sobre o tema.
Dentre
as publicações acadêmicas sobre o tema, destaca-se o artigo “Poder Judiciário e
mobilização do Direito: uma perspectiva dos ´usuários´”, elaborado pelo
cientista político, Michael W. McCann, da Universidade de Washington, que
analisa o tema a partir de um novo olhar: o dos usuários. No respectivo artigo,
ao constatar a ampliação da atuação do Poder Judiciário em temas como “o
tratamento das minorias raciais, étnicas e sexuais; os limites da liberdade
religiosa e da reprodução humana; os crimes contra os direitos humanos; o
sentido dos direitos sociais; a punição da corrupção política; e a
responsabilidade do Poder Executivo em matérias de segurança pública” (McCANN,
2010, p. 175), o autor procura compreender as causas do fortalecimento político
dos tribunais e quais as suas respectivas implicações.
Nesse
breve ensaio traça-se algumas breves reflexões sobre a referida obra de McCann
e a ADO 26. Em primeiro lugar, percebe-se que a proposição de McCann sobre
“mobilização do direito”, compreendida como “ações de indivíduos, grupos ou
organizações em busca da realização de seus interesses e valores”, foi
empregada pelos grupos da comunidade LGBTI+, ou seja, pelos “usuários”, para
buscar na mais alta corte brasileira, o STF, o amparo normativo para a demanda
de proteção aos integrantes da respectiva minoria. Consoante à ideia de que “a
lei é mobilizada quando uma necessidade ou desejo é traduzido em uma
reivindicação de lei ou afirmação de direitos legais” (ZEMANS apud McCANN, 2010, p. 182, tradução livre),
a ADO 26 constitui-se em exemplo paradigmático dessa asserção, porquanto foi um
dos instrumentos que a comunidade em questão empregou para efetivar seus
pleitos.
Em
segundo lugar, faz-se necessário perscrutar as motivações para a comunidade
LGBTI+ (usuários) ter escolhido o Poder Judiciário como um locus para a realização dos seus interesses e valores. Na sua obra,
McCann indica que os usuários recebem sinais simbólicos emitidos pelos
tribunais, tais como ameaças, promessas, modelos, legitimidade etc. Esses
sinais contribuem para traçar “o panorama ou a rede de relações na qual se
encontram as demandas judiciais em curso dos cidadãos e organizações” (McCANN,
2010, p. 183). É possível inferir que o STF já havia emitido diversos sinais
para a comunidade LGBTI+ que, possivelmente, contribuíram para o entendimento
da abertura para o pleito presente na ADO 26. Entre esses sinais destaca-se a
decisão resultante da ADPF 132, de 2001, favorável ao reconhecimento da união
estável homoafetiva. Corrobora a inferência, o entendimento de McCann de que
“as ações dos tribunais fornecem diversos ´precedentes´ estratégicos para as
partes envolvidas”, que se tornam “fichas para negociação, resultantes de
previsões sobre o que as partes conseguiriam se fossem parar nos tribunais”.
Em
tempos em que a atuação contramajoritária dos tribunais fortalece-se, torna-se
fundamental compreender algumas consequências desse processo, relacionando-o
com a ADO em análise. Conforme observou McCann, a atuação dos tribunais aumenta
a “relevância da questão na agenda pública e cria novas oportunidades para
essas partes se mobilizarem em torno da causa”. No caso em tela, certamente, a
decisão do STF ampliou a relevância na agenda pública da questão LGBTI+ e abriu
campo para os militantes da causa expandirem suas demandas para novos vetores.
Ressalta-se também que a decisão do STF que criminalizou a homofobia “fornece
recursos simbólicos para esforços de mobilização em diversos campos”, dito de
outro modo, possivelmente contribuirá para que outros grupos sociais
minoritários utilizem-se dos tribunais como instrumento para a concretização de
suas demandas. Desse modo, o ciclo é retroalimentado, favorecendo a expansão da
atuação do Poder Judiciário para novas fronteiras.
Kleber – UNESP - Direito - 1º ano DIURNO
Nenhum comentário:
Postar um comentário