São Paulo, 02 de abril de 2023
Querida mãe,
Espero que esteja tudo bem por aí. Aqui na escola as coisas estão caminhando... e hoje eu queria te contar sobre uma aula que me deixou com a cabeça fervendo de tanto para pensar.
Foi na aula de sociologia. O professor falou sobre Max Weber, lembra que eu já comentei sobre ele? Aquele que estuda os tipos de dominação e a ação social. Ele explicou que existem três tipos de dominação: a tradicional, a carismática e a legal-racional. E que essas formas explicam como algumas pessoas conseguem comandar outras, como se fosse natural — por tradição, por carisma, ou por regras escritas. Aí, no final da aula, ele passou uma pergunta: a gente tinha que relacionar essa teoria com o que está no livro 'Racismo Estrutural', do Silvio Almeida.
O Silvio Almeida, mãe, reflete certas coisas que me acertaram no peito. Ele explica que o racismo é uma forma de dominação também — não só individual, mas sistemática. Uma dominação que tem a ver com raça, onde práticas conscientes e até inconscientes colocam pessoas negras em desvantagem, enquanto dão privilégios e maior representação às pessoas brancas. E que isso tudo é reforçado pelas instituições, principalmente o Estado, que molda nosso comportamento sem a gente nem perceber. Como se fosse um roteiro que já tivesse sido escrito, e a gente só estivesse atuando nele sem poder mudar o script.
Daí veio o momento que me deixou inquieto. Quando eu estava pensando na pergunta, olhei em volta da sala… e percebi que quase não tem aluno negro ali. Só tem eu e mais uma menina. Todo o resto é branco. E então aquilo fez ainda mais sentido na minha cabeça: o domínio que o Silvio Almeida fala não está só nos livros — ele está aqui, agora, na minha realidade. A sala já é a prova viva da pergunta que o professor fez. Fui falar isso pra ele, perguntei se eu podia usar essa percepção na minha resposta. Ele me cortou na hora. Disse que não era pra “fugir do contexto da questão”, que era pra focar na teoria.
Na hora eu calei, mãe. Mas por dentro… nossa, fiquei engasgado. Porque eu estava falando exatamente da teoria. Só que com a minha vivência, com o que eu estava vendo ao meu redor. Só que ele, como professor — e homem branco —, achou que o que eu sentia era "fora de contexto". E aí fiquei pensando: se ele é a autoridade ali, se ele tem o “domínio”, como o próprio Weber diz, será que ele está certo só por causa disso? E eu, só por ser aluno — e negro —, estou automaticamente errado, mesmo quando o que eu digo vem da minha experiência real?
No fim, me senti só. Não por estar sozinho na ideia, mas por ser quase o único corpo preto naquele espaço. Me senti como só mais um ali, meio invisível, meio encaixado à força num molde que não foi feito pra mim.
Semana que vem eu te escrevo de novo contando as próximas novidades. O professor disse que vai terminar a teoria de Weber e que vai continuar relacionando com questões raciais. Mas fica tranquila, mãe, eu prometo que não vou “arrumar discussão” com ele de novo. Não quero me sentir excluído outra vez, nem ter minhas ideias menosprezadas como se fossem ruído.
Só que, pensando bem… talvez seja exatamente assim que o domínio que o Silvio Almeida falou se perpetua. Quando a gente é coagido — mesmo que de forma silenciosa — a se calar. Quando um professor branco, que representa a instituição, desautoriza a voz de um aluno negro que está tentando pensar. E aí o ciclo continua: quem tem o poder, domina. E quem não tem, se acostuma a ficar quieto.
Com saudade,Teu filho, Abdias.
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