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terça-feira, 20 de maio de 2025

O conceito weberiano de "Legitimidade" como instrumento de desmantelamento do Racismo

    Acredito que, de fato, deva ser duro para uma mãe dizer, sem eufemismos, para seu filho de apenas onze anos, a seguinte frase: "Filho, para você ter a mesma coisa que as outras crianças, você vai precisar se esforçar duas vezes mais". Lembro-me nitidamente das inúmeras situações vivenciadas durante meu ensino infantil e o início de meu ensino fundamental que me colocaram frente a frente a um monstro atroz, do qual ainda sinto medo. Nunca entendi porque a grande maioria dos meus professores ou coordenadores tratavam-me ou com ausência, como quando eu, assim como as outras crianças pretas da sala, ficava relegado a segundo plano, enquanto as crianças brancas recebiam, muito perceptivelmente, toda a atenção; ou com atenção exacerbada, como se eu, por ser preto, fosse mais frágil ou menos capaz do que as outras crianças. Ao relatar situações como essas para meus pais, pude então, ao ouvir a frase proferida pela minha mãe, entender, ainda muito novo, que o monstro que eu tanto temia, e certamente ainda o temo, tem nome: Racismo.

    Na adolescência cultivei um interesse por conhecimentos literários, filosóficos, políticos e sociológicos acerca do racismo, assim como de suas expressões perceptíveis e não perceptíveis, e passei a ler livros como o "Pequeno Manual Antirracista", da filósofa brasileira, ativista e escritora, Djamila Ribeiro, "O Avesso da Pele, do escritor brasileiro Jeferson Tenório, e "Racismo Estrutural", do jurista e escritor Sílvio Almeida. Decerto, todo o conhecimento apreendido com tais livros contribuiu expressivamente para uma compreensão dos fenômenos sociais muito mais atenta à relevância que as etnias, a cor da pele, a cultura e a história de cada indivíduo têm nas relações sociais. E no que diz respeito à compreensão de como a "raça" foi fundada e posteriormente mantida pelas classes dominantes ao longo da história, pilar central para a compreensão do Racismo in se, o conhecimento teórico mais apropriado é, sem dúvidas, o contido no livro "Racismo Estrutural".

    Para a exposição dos principais conhecimentos abstraídos com sua leitura, proponho uma análise sociológica de um caso de Racismo ocorrido no ano de 2019, no qual, em um show realizado pela cantora de etnia branca, Luísa Sonza  - e aqui enfatizo sua etnia não porque apenas os brancos têm pensamentos de cunho racista, mas sim porque apenas os brancos podem ser efetivamente racistas - em uma pousada em Fernando de Noronha, uma mulher negra que foi assistir a esse show, Isabel Macedo de Jesus, recebeu ordens pela cantora para a entrega de um copo de água a esta, como se fosse uma funcionária do evento; ao negar a ordem dada pela cantora, Luísa mostrou-se surpresa por Isabel não trabalhar no local. Em razão do ocorrido, uma ação por danos morais foi aberta em 2019 contra a cantora e a pousada na qual ocorreu o evento.

    Analisemos, então, o caso à luz dos conhecimentos expostos no livro de Sílvio Almeida. Podemos, primeiramente, nos perguntar a razão pela qual a cantora imaginou que Isabel estaria trabalhando no evento, imaginando se havia algo nas roupas, ou ainda nas ações desta no evento que remetessem ao trabalho. De fato, nada em Isabel remetia ao trabalho no evento, senão, sua cor, seus traços fenotípicos analisados sob a perspectiva racista da cantora. E a razão pela qual a cantora enquadrou Isabel apenas como uma trabalhadora do evento com base em sua cor de pele reside nos impactos que o racismo estrutural criou historicamente no imaginário de cada indivíduo.

    Destrinchemos o termo "racismo estrutal" para uma compreensão completa do fenômeno. Por Racismo, entendemos-no como um sistema histórico de opressão e dominação, gerador de discriminação, ao passo que é um sistema de discriminação indireta, isto é, "Já a discriminação indireta é um processo em que a situação específica de grupos minoritários é ignorada" (Almeida, 2009, p.27). O racismo opera com base nos traços étnicos, e portanto, é etnocêntrico, e seu modus operandi é o de excluir, segregar e discriminar toda e qualquer pessoa elencada como passível destes; a violência, seja ela direta ou não, institucional ou não, é um instrumento, um meio para a discriminação efetiva. Ao discriminar exclusivamente Isabel por sua cor, Luísa Sonza fez uso de sua autoridade, indissociável de sua pretenciosa legitimidade de mulher branca, em um sistema histórico de dominação, e agiu indiscutivelmente de maneira racista.

    Já o termo "estrutural" diz respeito a toda a construção histórica que o Racismo teve ao longo dos anos, engendrando-se nos costumes, na cultura, na motivação dos atos individuais de cada um, nas instituições sociais e, sobretudo, no imaginário individual, e portanto, no imaginário coletivo. A construção histórica do Racismo no país se deu devido à dominação imposta pelos europeus aos negros africanos para cá trazidos, no contexto colonial de escravidão; mesmo após o fim legal da escravidão, o esquecimento progressivo que foi dado à população negra no país culminou em uma segregação efetiva desta, relegando-os a papeis secundários e terciários na ordem social. Por conseguinte, a manutenção a tal situação dada pelas classes dominantes brancas engendrou e estruturou ainda mais o racismo na sociedade contemporânea, principalmente nas instituições sociais, já que "os conflitos raciais também são parte das instituições" (Almeida, 2009, p.30).

    Na busca de conceder maior cientificismo e atenção á realidade, o fenômeno do Racismo deve ser observado mediante lentes sociológicas, sobretudo, mediante as perspectivas que centralizam as motivações que levaram a tais ações, e a forma como ações dominam outras ações por meio de uma pretensa legitimidade, já que o Racismo não é apenas um fenômeno social de ordem estritamente coletiva, mas sim um fenômeno que individualmente reflete características da totalidade. Dentre tais perspectivas, a mais fértil é a teoria sociológica de Max Weber, sociólogo alemão do século XIX, segundo a qual, se utilizada para analisar o Racismo quanto ação social, exporia que a ação social do Racismo é motivada por expressões históricas da cultura, e figura-se como uma forma histórica de dominação, originada pela utilização do poder pelas classes dominantes de etnia branca, que o exercem por meio de sua autoridade, originada de sua legitimidade. Aqui daremos mais atenção ao conceito de legitimidade por relacionar-se ao principal gargalo no combate ao racismo: a falsa argumentação de inércia histórica. Para Weber, a legitimidade é um motivo pretenciosamente válido para cada indivíduo exercer sua autoridade por meio do poder, objetivando uma possível dominação. No caso do Racismo, a legitimidade que o legitima não é de ordem legal desde o ano de 1951, com a criminalização do Racismo, mas sim de ordem histórica e tradicional, ou seja, o que legitima o Racismo é sua estruturação e seu engendramento histórico, e o que legitima a irresponsabilização dos atos racistas cometidos pelas pessoas é a falsa argumentação de uma inércia histórica, ou seja, de que as coisas sempre foram assim historicamente e portanto, tardam a mudar, ressaltando que o conceito weberiano de "legitimidade" tem papel central no combate ao Racismo, por impossibilitar, se rompido, o exercício da autoridade pelas classes dominantes por meio da força, e consequentemente, impossibilitar a instauração de uma dominação racial, isto é, clara e distintivamente, o Racismo.

Teodoro Susi Alves
1 Ano - Noturno

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