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sábado, 12 de agosto de 2017

Positivadamente Entorpecido

    Tive um sonho estranho. Um emaranhado de imagens distorcidas manifestava-se perante meus olhos fechados. Não sabia o que sonhava, não tinha ideia do que via, mas sentia medo por sentir que caia em meio a ideias que não eram minhas. Acordei assustado, embriagado por um entorpecente que não tinha usado.
    O sofá machucava minhas costas e a televisão ligada emitia um barulho ensurdecedor. Engraçado como mesmo depois de desligada, continuava a incomodar. Me senti estranho, como se algo estivesse fora do lugar. Meus olhos percorriam a sala em busca do objeto “disfuncionalizado” sem sucesso, até que percebi o erro. Não enxergava.
    Via, no entanto. Era capaz de ver os objetos dispostos na sala, a mobília simetricamente organizada, a garrafa de cerveja vazia ao lado dos restos do aperitivo que eu ingeria anteriormente assistindo ao jogo. Via os livros na estante, organizados em ordem alfabética e meu gato adormecido, suspirando regularmente enquanto abraçava o pé gelado da mesa de centro. Via tudo, mas não enxergava nada. Era como se eu pudesse ver apenas aquilo que estava ali, visível, concreto e real. Como se tudo fizesse parte de uma realidade superficial da qual eu não era capaz de extrair uma única verdade profunda, onde nada tinha um significado e tudo era regido por leis imutáveis.
    Sempre soube da existência de leis positivadas regendo a ordem universal, mas me considerava um anormal. Julgava ser diferente e alheio àquele sistema. Me negava a ser uma mera marionete moldada e funcionalizada por um desconhecido. Mas agora não conseguia mais enxergar aquele mundo transcendental que tanto amava, e tudo era demasiadamente normal.
    Me levantei com dificuldade, jurei a mim mesmo e às minhas costas que não mais dormiria naquele maldito sofá. Comecei a andar pelos cômodos e a correr pelos corredores. Era estranho. Quanto mais rápido eu me movia mais estático o mundo estava. Como se não importasse o que eu fizesse, nada jamais fosse mudar. Estava tudo muito parado, como se a Terra não girasse e o ponteiro do relógio estivesse sempre travado no mesmo lugar. O mundo estava estático e imutável, e eu estava cego.
    Olhei para meus livros e fui em direção a eles. Uma dor indescritível me abraçou quando percebi que só conseguia ver suas capas. Um livro fora do lugar me chamou a atenção. Era mais normal do que os outros, continha um nome esquisito e versava alguma baboseira sobre uma filosofia positiva. Abri-o e me surpreendi ao perceber que não era capaz de ler. Via as letras formando palavras e as palavras formando frases, mas era incapaz de extrair qualquer significado. O mundo era ordenadamente perfeito e nada mais tinha a se aprender, a vida era demasiadamente simples e qualquer um poderia entender. Nada transcendia a realidade e tudo não passava de mera normalidade.
    Decidi que precisava culpar alguém. Algo não estava certo, eu estava quebrado, estragado... e tinham feito isso comigo. Decidi culpar o livro. Aquele livro ordinariamente normal limitara minha visão e simplificara tudo. De alguma forma, não era como se eu tivesse apenas o lido na semana anterior e debatido minhas concepções com as do autor, mas como se eu tivesse incorporado um posicionamento que não era meu.
    Não sabia o que fazer e cheguei à que me pareceu a única solução possível. Ateei fogo naquele ordinário. As labaredas dançavam, cada vez mais belas e maiores. O estalar do fogo reproduzia a mais bela sinfonia. Absorto pelas chamas, eu estava imóvel. Hipnotizado pela única coisa naquela realidade que parecia se mover com sentido, que parecia ter vida.
    Um gato miou estridentemente e uma garrafa se estilhaçou após uma pancada surda. A televisão parara de fazer barulho e apenas refletia as graciosas chamas. O maldito sofá já não mais machucaria costa alguma. O teto desabava e alguém lá fora gritava por ajuda. Mas nada importava. As chamas estavam vivas, não estavam estáticas e definitivamente não eram ordinariamente normais. Entorpecido por elas, cometi mais um único erro proveniente da visão superficial da realidade. Me esqueci de deixar a casa.

    E por fim, aquele mundo tal qual eu conhecera de fato acabara...

Abner Santana de Oliveira- 1º Ano. Direito. Noturno.

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