Martírio Tardio
Um pequeno quarto soturno
abrigava uma aranha, uma cama e um homem de espírito limitado.
– Argh! Quem diria... acho que
alucino.
A aranha deu início ao tecer de
sua teia. Logo, em cada fio daqueles, o sujeito via um momento de sua vida se encaixar diante
de seus olhos.
– Foi um longo caminho até aqui.
Necessário, claro. – Olhava fixamente o aracnídeo, dialogando – Não vim ao
mundo como você... sabendo como tecer minha teia. Vim sem nada, incapaz até mesmo de
adquirir qualquer conhecimento real. Fui preparado pela fé: Papai Noel
ilustrou-me a importância da educação e de ouvir meus pais, a Fada do Dente
demonstrou-me que a fortuna é recompensa a ser conquistada com paciência, Os
Super-heróis prepararam-me para ter coragem de enfrentar as anomalias da vida
em defesa dos “justos”, dos “bons”.... Mas é claro que não foi assim durante
toda a minha infância. Aos poucos, eu entendia a existência de nossas preciosas
instituições. Quando atingi o estado viril de minha inteligência, eu podia
identificar as leis sociais e sua explicação, a função da ordem para nosso
progresso. Arrgh!! Maldita dor no peito! – Rosnou, suando frio – Não, não se
preocupe, eu sou médico. Dos bons! O papel dos líderes é muito exaltado, porém o meu é tão importante quanto o deles, sabe? Eu mantenho em bom estado as nossas forças produtivas...
Fluoxetina, Rivotril... existem vários tipos de patologias, a ciência também é
o remédio para essa que chamam de angústia, bem como as demais emoções
profundas e incômodas. Nem todos amadurecem seu espírito de maneira tão rápida,
pensam em desistir, são uns frouxos! – Sentiu uma falta de ar que o fez
interromper o tom abruptamente, fechou os olhos por um tempo até melhorar – Sua
teia tem um alcance curto... olhe, um mosquito passando bem ali! – Já não sabia se
falava ou pensava – a minha é diferente... bem... a minha é normal. Só não há,
nela, espaço para vergonhas como aquele meu filho “viado”! Expulsei mesmo. “Diversidade”,
ele argumentou, besteira! Devemos ser, naturalmente, iguais, apenas com funções
diferentes de acordo com nossa posição social. Equilíbrio! Por isso existem
regras, para prosseguirmos em alta velocidade. – Vacilou – Certo? O que importa
se seus amigos se afastam aos poucos?! “Prepotente!”, me diziam... É, até que
sinto falta deles. Era o jeito... sou muito ocupado com minhas funções, sabe? Dia,
noite, final de semana... é fácil falar que somos escravos do tempo ou qualquer
besteira, quero ver é não passar fome. Fome... como será que está meu filho?! É
tanta velocidade, alta velocidade na mesma direção... as vezes me esqueço do
que fica para trás. Seria a pluralidade de direções tão impressionante, mesmo?
O quê?! Acha que estou perdendo algo, "moscando"?! – Fechou os olhos – Alucino ou alucinava?! Talvez eu devesse dar uma chance, ver o mundo por outras
perspectivas... nem que seja para reafirmar e comprovar meu ponto. Não estudo nenhuma
filosofia, sigo a ideologia que está diluída na sociedade... invisível porque
mesclada ao senso comum. É a mais eficiente... ou mais perigosa.... Acho que vou...
experimentar... o mundo... a novidade...
Um pequeno quarto soturno
abrigava uma aranha, uma cama e um cadáver.
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