Em 2011, o Supremo Tribunal
Federal julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade acerca do
reconhecimento da união homoafetiva enquanto instituto jurídico. Ou seja: pediam
que as famílias formadas por casais homossexuais fossem reconhecidas como
famílias também perante a lei. O debate principal gira em torno do art.226,
que, segundo a interpretação do Ministro Lewandowski, exemplifica formas de
famílias: as famílias formadas pelo casamento entre homem e mulher, as famílias
formadas por união estável entre homem e mulher e as famílias mononucleares,
formada por um indivíduo e seus descendentes. Essas são citadas pela maior recorrência
à época da Assembleia Constituinte, sendo as demais entidades familiares tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência
do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput do artigo
supracitado.
Segundo o resumo do Ministro
Ayres Britto (relator do caso), “o não reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar pela ordem infraconstitucional brasileira
priva os parceiros destas entidades de uma série de direitos patrimoniais e extrapatrimoniais”,
o que lesa uma série de princípios fundamentais. Essa lesão decorre da conduta
adotada pelos poderes públicos e, portanto, é passível de uma ADPF, visando
entender que o art.226, §3º, não veda a união homoafetiva não tampouco é obstáculo
intransponível para o reconhecimento dessas – considerando uma interpretação segundos
os princípios gerais da República, que repudiam o preconceito e a exclusão social
dos homossexuais. O artigo supracitado visava ser inclusivo, não devendo ser interpretado
de forma exclusiva, sendo cabível uma interpretação analógica sobre ele para
tutelar a entidade familiar formada por pessoas do mesmo gênero.
Há uma série de princípios constitucionais que
eram violados pelo não reconhecimento da união homoafetiva: o direito à
igualdade, a autonomia da vontade, o direito à intimidade e à vida privada, a
norma geral negativa, o direito à busca da felicidade e o princípio da
dignidade da pessoa humana, elemento nuclear do nosso ordenamento jurídico. Dessa
forma, a imposição de restrição não é justificada pela promoção de outros bens
jurídicos – já que a união e formação de famílias não têm efeitos
significativos na vida de outras pessoas e nem lhes restringe algum direito – o
não reconhecimento das famílias formadas por casais homoafetivos é um mero preconceito
e um autoritarismo moral.
Tendo
em vista a violação de direitos e a postura perpetuadora de desigualdades dos
poderes públicos, fica entendido que cabe ao judiciário apreciar o caso.
Entretanto, segundo a doutrina tradicional, o papel do Supremo Tribunal Federal
é o de interpretar leis, não cria-las.
É
certo que o Judiciário não é mais, como queriam os pensadores liberais do
século XVIII, mera bouche de la loi, acrítica e mecânica, admitindo-se
uma certa criatividade dos juízes no processo de interpretação da lei,
sobretudo quando estes se deparam com lacunas no ordenamento jurídico. Não se
pode olvidar, porém, que a atuação exegética dos magistrados cessa diante de
limites objetivos do direito posto. (LEWANDOWSKI, p.107).
Entramos
aqui no debate acerca da judicialização da política e do ativismo judicial. O primeiro
remete a fluidez da fronteira entre política e direito; já o segundo é uma
escolha por um modo específico e proativo de interpretar a constituição,
expandindo-a em sentido e alcance. Segundo Luís Roberto Barroso, as causas
disso são a expansão do poder judiciário na democratização, a constitucionalização
abrangente (tornar uma matéria constitucional é transformar política em
direito) e o rígido sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
Além disso,
há que se considerar a falta de representatividade no legislativo brasileiro,
que é causa e consequência da judicialização: por um lado, o judiciário atua
para satisfazer demandas não atendidas pelo parlamento; por outro, o
deslizamento do judiciário sobre competências parlamentares corrobora para o
comprometimento da cidadania e para a falta de representatividade, já que os
deputados e senadores deixam de debater uma série de questões tidas como
polêmicas por serem tratadas pelo judiciário. Assim, um seleto grupo de
magistrados com cargo eletivo tem o poder de decidir e sobrepor-se a
legisladores eleitos por milhões de cidadãos.
No caso
da união homoafetiva, é fato que o Judiciário foi chamado e a se manifestar,
uma vez que o “movimento LGBT” não tem espaço no parlamento; também é fato que
há violação de direitos e princípios fundamentais constitucionais e que o
Supremo Federal é o “guardião da Constituição”. Por outro lado, para que a
matéria fosse perfeitamente regulamentada, deveria haver alterações na legislação
infraconstitucional e emenda constitucional para o art.226.
O Congresso
Nacional eleito em 2014 é predominantemente conservador; as demandas sociais
encontram entraves declarados frente a parlamentares com interesses pessoais
por trás – sejam eles religiosos, morais ou econômicos. Entretanto, um erro não
justifica o outro e a confusão entre os três poderes (ainda que a atuação judiciária
deslize predominantemente sobre o legislativo) compromete um dos pilares da
democracia moderna (ainda que a judicialização da polícia seja uma tendência
mundial do pós Segunda Guerra Mundial).
O debate
acerca da união homoafetiva deixa claro não só a judicialização da política,
mas também a judicialização da vida cotidiana. Evidencia também a jurisdição do
poder público sobre a vida privada dos indivíduos e a imposição autoritária de
preceitos morais e religiosos sobre minorias, o que não se justifica numa
democracia ainda que sejam preceitos morais e religiosos da maioria. Numa nação
verdadeiramente livre de preconceitos, com plena igualdade e respeito para com
os gêneros, a matéria nem deveria ser alvo de tanta polêmica ou ao menos
passível de decisão judicial: parece óbvio que como cidadãos comuns, pagadores
de impostos, cumpridores de suas obrigações e sujeitos de direitos, os
homossexuais tem o direito não só de serem reconhecidos como famílias e obterem
união estável, mas de contraírem matrimônio.
Heloisa
de Maia Areias
1º
Ano de Direito – diurno.
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