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domingo, 18 de maio de 2025

Quarto de Despejo: por que o Brasil mantém sua população preta e parda segregada nas favelas?

          Após a chegada das frotas portuguesas na aurora do século XVI, a Terra dos Papagaios conheceu um longo processo de desumanização dos povos considerados “primitivos. No início da ocupação, os colonizadores se valeram de relações um tanto amistosas com as populações nativas do litoral. Com o tempo, através da ânsia por controle efetivo dos recursos encontrados e ampliação dos lucros da Coroa, o contato aparentemente solícito dos europeus evoluiu para um imponente domínio sobre os corpos indígenas, estabelecendo o começo da história da escravidão no Brasil.  

A partir da década de 1560, no entanto, os nativos passaram a ser vistos como uma mão-de-obra extremamente trabalhosa e de difícil manutenção, prejudicando diretamente a produção portuguesa. Nesse momento, a metrópole encontra sua nova fonte de trabalho no continente do outro lado do Atlântico: a África. Ao longo de mais de 300 anos, Portugal sustentaria o transporte de 4 milhões de negros escravizados para o Brasil, a fim de que operassem nas atividades agrícolas de modo forçado, sem pagamento, mediante relação de subsistência e sob severas violências.  

Tais indivíduos não possuíam qualquer direito hoje conhecido. Fundamentando-se em teorias pseudocientíficas, os portugueses fomentavam a narrativa que enxergava as populações não-europeias como inferiores, impondo aos negros a qualidade de mera mercadoria. Podiam ser comprados e vendidos, doados e alugados, humilhados e violentados de todas as formas pelo seu donatário. Eram espacialmente segregados, sendo obrigados a viverem em locais conhecidos como “senzalas”, sofriam com fome, sede e frio, sem a menor possibilidade de reclamação, da mesma forma que ficavam acorrentados e se tornavam vítimas de castigos físicos cruéis (incluindo, no caso das mulheres e meninas, estupros e assédios variados) 

Já no século XIX, a Europa encarava não só a consolidação dos ideais Iluministas de liberdade e igualdade, bem como assistia à ascensão das Revoluções Industriais. A Inglaterra, referência em ambos os processos, logo compreendeu que, sem um mercado consumidor numeroso e com pertinente poder de compra, tudo aquilo alcançado por suas fábricas viria a se tornar um grande fardo econômico. Ora, mas onde estavam todos esses potenciais consumidores? Estavam nas colônias, sendo tratados como animais. Os ingleses, amplos defensores de uma mão-de-obra livre e remunerada, trataram imediatamente de proibir o tráfico negreiro em seu território e pressionar as nações aliadas a fazerem o mesmo.  

O Brasil Imperial, ao receber a pressão inglesa, iniciou um longo e lento movimento em direção à abolição da escravatura, editando leis que, aos poucos, conferiam mais liberdades aos negros. Finalmente, no dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel de Bragança, filha do imperador Dom Pedro II, assinou a chamada Lei Áurea, declarando extinta a escravidão no Brasil.  

Todavia, apesar de oficialmente libertos, os negros não receberam qualquer garantia de inserção na sociedade. A população preta permaneceu sem poder desfrutar devidamente dos direitos básicos, como alimentação, segurança, integridade e, especialmente, moradia. Sendo uma parcela sem muitos recursos financeiros, os negros foram obrigados a se estabelecerem nas regiões mais afastadas dos centros urbanos, dando origem às favelas.  

A primeira favela do Brasil foi o Morro da Providência, criado no Rio de Janeiro em meados de 1897. Contava com ex-soldados, desertores, miseráveis e, sobretudo, uma grande quantidade de negros e pardos. Desde então, nosso país viu essas comunidades crescerem ostensivamente e serem permeadas pela população preta/parda: de acordo com o Censo Favelas realizado pela Agência Brasil em 2024, os pretos e pardos correspondem, somados, a 72,9% de todos os moradores das comunidades brasileiras 

Diante desse cenário, surge a dúvida: por que, mesmo após mais de 100 anos desde a abolição da escravidão, os negros continuam sofrendo com a segregação socioespacial? A resposta está na legitimação do racismo 

No livro Racismo Estrutural, o professor e ex-ministro Silvio Almeida apresenta três percepções sobre o racismo, isto é, a força sistemática de discriminação cujo fundamento é a raça: (1) a concepção Individualista; (2) a concepção Institucional e (3) a concepção Estrutural. Analisando-se as duas últimas, entende-se que a exclusão socioespacial sofrida pela população negra é mantida tanto por um preconceito histórico enraizado na sociedade (dimensão estrutural) quanto pela institucionalização desses mesmos preconceitos, os quais impõem “regras, padrões de condutas e modos de racionalidade que tornem ‘normal’ ou ‘natural’ o seu domínio”. (ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019.) 

O “tornar natural” diz respeito ao processo de legitimação. Para o sociólogo Max Weber (1864-1920), nenhum processo de dominação ocorre sem a crença na legitimidade do regime. Esse conceito deve ser considerado uma probabilidade de a dominação ser reconhecida e praticada como tal: “O decisivo é que a própria pretensão de legitimidade, por sua natureza, seja ‘válida’ em grau relevante, consolide sua existência e determine, entre outros fatores, a natureza dos meios de dominação escolhidos.” (WEBER, Max. Economia e Sociedade. Vol. I. 3ª Edição. Brasília: Editora da UnB, 1994. p. 140.) 

Logo, partindo da definição weberiana, o racismo estrutural legitima o racismo institucional, ficando as instituições sociais tomadas por determinados grupos raciais que utilizam seus mecanismos para apartar os “estorvos”. Desse modo, há a normalização da dinâmica segregacionista que ainda empurra os negros para as periferias, sendo essa conjuntura legitimada pelo racismo sistêmico que permeia os órgãos públicos brasileiros, os quais deveriam garantir o acesso à moradia de qualidade a todos os cidadãos brasileiros, sem exceção.  

Como conclusão, entendemos que nada no Brasil é tão simples quanto parece, principalmente no que diz respeito à população negra. É necessário entendermos que, vítimas de um processo histórico de exclusão e violência, os negros permanecem sofrendo as consequências de um racismo intrínseco à sociedade brasileira e, por isso, a eles é destinado o “quarto de despejo”, nas palavras da escritora favelada Carolina Maria de Jesus 

Vitória Alvarenga Pistore - 1º ano - Direito (Matutino)

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