(Imaginação Sociológica)
Ah a casa da minha avó! Que saudade me traz. O clima quente e acolhedor, o cheiro de café da tarde, suave e doce que apenas meu avô podia fazer. Esse, que nunca fugiu de minha memória, eu que era apenas uma menina. Até hoje nunca havia experienciado melhor. Era um lugar mágico, na mesma medida que curioso.
- Vó, por que minha mãe não tem a mesma cor que você? – Considero um questionamento comum para uma criança de 9 ou 10 anos.
- Perguntinha esquisita! Cada um tem a sua cor! A vó é queimada do sol, filha!
E eu, era uma criança de 9 ou 10 anos que nunca recebia uma resposta que realmente sanasse minhas dúvidas.
- Olha vó, como o cabelo do vô é lisinho e macio! Posso passar a mão no da senhora?
- Não meu bem, o cabelo da vó é ruim, duro. É estragado pelo sol.
Enquanto crescia, sempre me perguntei, mas que sol é esse que prejudicou tanto minha avó!?
- Vó, pode me falar daquela vez que um policial pegou minha mãe no colo quando ela era bebê?
Nos auges dos 12 anos, todos meus amigos amavam policiais, não podíamos ver uma viatura passando em frente à escola, que acenávamos felizes.
- Tudo bem. Certa vez, eu passeava com sua mãe no colo, no centro da cidade. Um homem alto, da cor do seu avô, bem fardado, se aproximou e pediu meus documentos, sorte que sua vó anda preparada, criança! Já mesmo: “aqui senhor!”. Ele me perguntou se o bebê em meus braços era realmente meu, engraçado, não é? Eu entreguei na hora a certidão de nascimento da sua mãe, os papéis do casamento meu e do seu avô, nossos documentos, e até mostrei minha carteira de trabalho! Enchi aquele homem de papéis! Haha!
- E aí?
- Ele pediu para segurar um pouco a sua mãe, me contou que havia relatos de uma mulher que se parecia comigo, que estaria sequestrando bebês próximo dali. Assustador, não é? Mas logo devolveu sua mãe, os documentos, e se retirou.
A senhora fez uma pausa para o café, e continuou.
- Então, minha neta, nunca se esqueça de andar com seus documentos, nunca se sabe.
- O que nunca se sabe?
- Que podem existir pessoas ruins parecidas com você.
Eu amava as tardes na casa da minha vó. Mas não gostava das suas respostas incompletas e sem sentido! Como pode o sol queimá-la, mas não meu avô? Como pode ter pessoas tão parecidas assim para serem confundidas?
...
- Vó, me conta uma história da sua infância?
- Claro, você sabe o motivo das mãos e os pés da vó serem mais claros? Minha mãe que me contou. Deus havia feito um rio para lavar o pecado dos homens, mas os negros eram muito preguiçosos e demoraram a sair. Assim, foram os últimos a chegar, quando restavam apenas algumas poças de água, a única parte do corpo que conseguiram lavar eram a sola dos pés e a palma das mãos. Ainda estamos sujos de pecado, filha. Vamos à igreja com a vó hoje?
Eu gostava de acompanhá-la nos cultos.
- Vó, o meu cabelo não é igual o do vô e o da minha mãe, ele é ruim igual ao da senhora?
Como posso imaginar o que aquela mulher preta, calejada pelo sol, poderia estar pensando naquele momento? Como poderia culpá-la pelos sofrimentos e ataques que já sofreu? Como poderia esperar outra resposta dela, se tudo que ela já havia aprendido sobre si, era negativo?
- O cabelo da vó é cabelo de negro, seu cabelo não é igual o da vó meu bem, é cabelo cacheado de pardo.
- Pardo?
No dia seguinte levei a questão até meus pais, que me afirmaram, eu era, sim, parda.
E de repente, tive consciência da identidade que foi me dada. Eu sabia precisamente o que significava ser pardo? Nadinha, e acredito ainda não saber, mas era o que eu era, e não havia como escapar.
- Vó, minha mãe finalmente me deixou começar a alisar o cabelo, igual ela e minha irmã!
- Que bom meu bem, quando ficar pronto vem aqui para a vó passar a mão.
- Vó, a senhora é muito bonita, vamos tirar uma foto?
- Ô minha filha, deixa a vó prender o cabelo, pega os grampos para mim.
- Não vó, vamos tirar com ele solto! É bonito!
- Onde já se viu cabelo de negro ser bonito!
Queria convencê-la que seus cabelos crespos eram bonitos, quando ainda alisava os meus cacheados...
Foi muito difícil para aquela menina, neta de avós negras e avôs brancos, filha de pais pardos, entender de verdade suas raízes. Entender que, às vezes, somos negros os suficientes para sofrer racismo, mas não o suficiente para reivindicar nossos direitos depois.
- Vó, eu sou negra, e a senhora também. Eu entendo agora, me deixe te dizer o quão forte nosso povo é? O quão forte a senhora sempre foi, e continua sendo? Tudo isso de que negros são feios, preguiçosos, bandidos, tudo o que te disseram sobre seu cabelo e sua cor, todo esse preconceito tem uma raiz, e eu gostaria de te contar. É sobre o racismo estrutural, ele vem do colonialismo e da escravidão. As pessoas passaram a normalizar algumas atitudes, e elas passam despercebidas agora, mas não deveriam! Você entende, vó? Posso te contar mais?
- Claro filha, mas a vó está cansada, posso fechar os olhos um pouquinho?
- A senhora é a pessoa mais linda e forte que conheço, vó.
Esse texto é um lembrete para mim, de nunca me esquecer de onde vim, e como cheguei aqui. Preciso voltar para minha vó.
Evelly Alonso Lopes - 1 ano Direito Noturno
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