Nos últimos anos, nos âmbitos da
Nova República e do Estado Democrático de Direito, instalado com a Constituição
de 1988, tem ocorrido um fenômeno de grande destaque nos meios jurídicos e
sociais, relacionado à busca por justiça, proteção legal, expansão e conquista
de direitos: o ativismo judicial. Tal fenômeno se caracteriza pelo aumento,
tanto de quantidade quanto da relevância de questões políticas, com
repercussões de importância social e jurídicas, que são resolvidas no âmbito do
Poder Judiciário. No texto anterior postado, o foco principal foi a análise da
legitimidade deste fenômeno e os fatores que o desencadearam no contexto
político nacional. Nesse texto, no entanto, o foco maior será dedicado às
repercussões sociais das decisões jurídicas tomadas e o papel desempenhado
pelo corpo social e os grupos que acionam o Judiciário em seu anseio de
assegurar seus direitos constitucionais, examinando-se, como exemplo base de
decisão, a ADO nᵒ 26, na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
criminalização da homofobia.
A Ação Direta de Omissão nᵒ 26 foi
intentada pelo Partido Socialista (PPS) em 2019, com a finalidade de obter a
criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia. Tais
atos não se encontravam categorizados explícita e especificamente no Código
Penal, não sendo reconhecida, até então, a homofobia como um fator agravante,
uma motivação preconceituosa, em crimes de danos morais e físicos contra
membros da comunidade LGBTQIA+. Portanto, não havia nos parâmetros do espaço
dos possíveis, termo criado pelo sociólogo Bourdieu para caracterizar os
entendimentos da legislação, da doutrina e da jurisprudência, uma norma que
protegesse legalmente tal grupo social de ataques incitados por ódio e que
buscasse combater expressamente este tipo de preconceito.
Também é importante ressaltar que a luta da
comunidade LGBTQUIA+ pelo reconhecimento e positivação de tais crimes de ódio
ocorria nos meios legislativos e públicos há muito tempo. Projetos de lei a
respeito da criminalização da homofobia transitavam nos meios do Congresso
Nacional há mais de dez anos quando os grupos afetados resolveram levar a
questão ao Judiciário. A ação, que contou com ampla participação social durante
o processo, através das diversas entidades e organizações defensoras dos
direitos da comunidade interessada que puderam influenciar diretamente a
decisão do Supremo, por meio da sua participação no corpo de amicus curiea, refletiu
essa óbvia omissão por parte do poder Legislativo em cuidar de tipificar os
atos de homofobia e transfobia.
Tendo
isso em vista, é notável no caso dessa decisão a atuação do Poder Judiciário
como um remediador para as omissões do Poder Legislativo, em um claro exemplo
de magistratura do sujeito. Como explica o sociólogo Antoine Garapon, em meio
aos conflitos sociais nascidos nos âmbitos democráticos, muitos sujeitos e
grupos minoritários acabam perdendo força e espaço devido a sua condição
histórica e social marginalizada, o que geralmente implica em um constante
ataque aos seus direitos fundamentais. Dessa forma, o Judiciário possui a
capacidade de devolver a dignidade democrática aos sujeitos mais desamparados
da sociedade, nas palavras do. Em um contexto de crise representativa e
negligência por parte do Congresso de tratar de assuntos que podem ocasionar
polêmica, esta capacidade se mostra de extrema essencialidade para a manutenção
dos princípios democráticos e constitucionais.
É
necessário, no entanto, reiterar mais uma vez a mobilização social do Poder
Judiciário, de modo afastar a ideia de que essa tutelarização dos direitos dos
sujeitos ocorra de maneira paternalista. Na perspectiva do ativismo judicial, o
Judiciário atua como uma ferramenta, um meio de resolução de conflitos travados
no interior da sociedade democrática. Assim, como afirma, o sociólogo Michael
McCann, os tribunais não determinam as ações judiciais dos cidadãos e
organizações, mas ajudam, de modo ativo, a traçar o panorama ou a rede de
relações na qual se encontram as demandas judiciais em curso dos cidadãos e
organizações, de modo a legitimar e contribuir para as lutas sociais destes.
Pois
bem. A partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, homofobia e
transfobia foram criminalizados de maneira específica e sistêmica, ainda que
por meios judiciais excepcionais e não por meios legislativos. O plenário do
STF, seguindo os argumentos apontados pelo ministro relator do caso, Celso de
Mello, compreendeu que a homofobia e a transfobia se enquadravam no conceito de
racismo, já tipificado especialmente como crime de ódio. Os ministros,
portanto, estenderam o entendimento de racismo existente, compreendendo, com
base na jurisprudência do próprio tribunal, sobretudo na HC nᵒ 82. 424/RS, em
que atos anti-semitas foram enquadrados na lei anti-racismo, e em princípios
constitucionais, tais como a vedação da discriminação, a isonomia e a proteção
da dignidade humana, que racismo envolve a ideologia de que existe a
superioridade de um grupo em desfavor de outro. Dessa forma, a comunidade
LGBTQIA+ se encontraria em uma posição social inferior em relação à parcela da
população heterossexual e cisgênera, devido à perseguição histórica e constante
daquele grupo.
Nota-se,
dessa maneira, que o Poder Judiciário desencadeou uma abertura do espaço dos
possíveis para englobar atos degrantes e preconceituosos que ainda não haviam
sido descritos objetivamente. Também é perceptível a realização da historização
das normas constitucionais a fim de abarcar questões sociais que, à época da
constituinte, não possuíam espaço ou força para serem de fato tipificados, mas
cuja essencialidade sempre esteve presente nos artigos da Constituição; nessa
situação, portanto, há a evolução posteriori do direito para abarcar um
tipo específico de crime de ódio cuja a vedação foi a priori concebida
pela essência da Constituição de 1988.
Resta,
desse modo, discutir as repercussões da decisão em questão, nos meios sociais e
jurídicos. Uma das principais características do ambiente judicial e da norma
efetiva, de acordo com Bourdieu, é a sua racionalidade; nela, está englobada o
potencial de universalização e neutralização da norma, que, basicamente,
consistem em seu potencial de se fazer valer em caráter universal e de maneira
objetiva. Assim, a primeira grande repercussão da decisão judicial em destaque
foi, precisamente, o enquadramento de atos homofóbicos e transfóbicos como
crimes raciais, o que lhes conferiu uma maior proteção judicial e repreensão
penal. Nessa perspectiva, tais crimes passaram a ser combatidos mais
severamente, o que ocasionou a redução destes nos anos que seguiram à decisão.
Em
uma segunda análise, nota-se que a criminalização da homofobia por vias
judiciais teve consequências estruturais mais profundas e abrangentes, atuando
não apenas no combate das violências físicas, mas também das simbólicas. A
discussão de tal questão nos âmbitos da Suprema Corte despertou um interesse
nacional, como se é de esperar, pelo tema, o que fez com que homofobia e a
transfobia passassem a ser discutidas mais abertamente nos meios públicos e
políticos. Em um nível estratégico e instrumental, decisão do STF trouxe
legitimidade e reconhecimento às lutas contra a discriminação da comunidade
LGBTQIA+, pavimentando o caminho para que tal luta continuasse seu processo de
expansão no futuro, sempre em busca de assegurar os direitos do grupo e
combater as injustiças contra ele proferidas. Já em um nível cultural e
constituitivo, a decisão do tribunal trouxe uma visibilidade fundamental à
causa LGBTQIA+, expondo de maneira aberta e explícita as perseguições sofridas
pela comunidade no Brasil e suas consequências gravíssimas e promovendo a
interiorização do direito ao defender a negação da discriminação e incentivar a
igualdade. A criminalização da homofobia contribui para construir uma barreira
contra as humilhações e as exclusões sociais provocadas contra a comunidade em
questão e, ao mesmo tempo, edificou um palanque, onde essas vozes que, por
tanto tempo, foram ignoradas, puderam finalmente conquistar um espaço legítimo
para se defenderem.
Em resumo, têm-se que ADO nᵒ 26 foi um marco brilhante para a democracia brasileira, à medida que ajudou a amenizar conflitos sociais graves e abriu espaço para que grupos marginalizados buscassem pelo reconhecimento de seus direitos, agindo contra posturas majoritárias e anticonstitucionais, e um exemplo de como o ativismo judicial pode atuar como ferramenta potente a favor da mobilização e das lutas sociais.
Nome: Isabela Maria Valente Capato
R.A: 221221468
Primeiro ano de Direito - período matutino
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