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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

ADO nᵒ 26 e a capacidade legitimação de lutas sociais pelo ativismo judicial

 

            Nos últimos anos, nos âmbitos da Nova República e do Estado Democrático de Direito, instalado com a Constituição de 1988, tem ocorrido um fenômeno de grande destaque nos meios jurídicos e sociais, relacionado à busca por justiça, proteção legal, expansão e conquista de direitos: o ativismo judicial. Tal fenômeno se caracteriza pelo aumento, tanto de quantidade quanto da relevância de questões políticas, com repercussões de importância social e jurídicas, que são resolvidas no âmbito do Poder Judiciário. No texto anterior postado, o foco principal foi a análise da legitimidade deste fenômeno e os fatores que o desencadearam no contexto político nacional. Nesse texto, no entanto, o foco maior será dedicado às repercussões sociais das decisões jurídicas tomadas e o papel desempenhado pelo corpo social e os grupos que acionam o Judiciário em seu anseio de assegurar seus direitos constitucionais, examinando-se, como exemplo base de decisão, a ADO nᵒ 26, na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a criminalização da homofobia.

            A Ação Direta de Omissão nᵒ 26 foi intentada pelo Partido Socialista (PPS) em 2019, com a finalidade de obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia. Tais atos não se encontravam categorizados explícita e especificamente no Código Penal, não sendo reconhecida, até então, a homofobia como um fator agravante, uma motivação preconceituosa, em crimes de danos morais e físicos contra membros da comunidade LGBTQIA+. Portanto, não havia nos parâmetros do espaço dos possíveis, termo criado pelo sociólogo Bourdieu para caracterizar os entendimentos da legislação, da doutrina e da jurisprudência, uma norma que protegesse legalmente tal grupo social de ataques incitados por ódio e que buscasse combater expressamente este tipo de preconceito.

             Também é importante ressaltar que a luta da comunidade LGBTQUIA+ pelo reconhecimento e positivação de tais crimes de ódio ocorria nos meios legislativos e públicos há muito tempo. Projetos de lei a respeito da criminalização da homofobia transitavam nos meios do Congresso Nacional há mais de dez anos quando os grupos afetados resolveram levar a questão ao Judiciário. A ação, que contou com ampla participação social durante o processo, através das diversas entidades e organizações defensoras dos direitos da comunidade interessada que puderam influenciar diretamente a decisão do Supremo, por meio da sua participação no corpo de amicus curiea, refletiu essa óbvia omissão por parte do poder Legislativo em cuidar de tipificar os atos de homofobia e transfobia.

Tendo isso em vista, é notável no caso dessa decisão a atuação do Poder Judiciário como um remediador para as omissões do Poder Legislativo, em um claro exemplo de magistratura do sujeito. Como explica o sociólogo Antoine Garapon, em meio aos conflitos sociais nascidos nos âmbitos democráticos, muitos sujeitos e grupos minoritários acabam perdendo força e espaço devido a sua condição histórica e social marginalizada, o que geralmente implica em um constante ataque aos seus direitos fundamentais. Dessa forma, o Judiciário possui a capacidade de devolver a dignidade democrática aos sujeitos mais desamparados da sociedade, nas palavras do. Em um contexto de crise representativa e negligência por parte do Congresso de tratar de assuntos que podem ocasionar polêmica, esta capacidade se mostra de extrema essencialidade para a manutenção dos princípios democráticos e constitucionais.

É necessário, no entanto, reiterar mais uma vez a mobilização social do Poder Judiciário, de modo afastar a ideia de que essa tutelarização dos direitos dos sujeitos ocorra de maneira paternalista. Na perspectiva do ativismo judicial, o Judiciário atua como uma ferramenta, um meio de resolução de conflitos travados no interior da sociedade democrática. Assim, como afirma, o sociólogo Michael McCann, os tribunais não determinam as ações judiciais dos cidadãos e organizações, mas ajudam, de modo ativo, a traçar o panorama ou a rede de relações na qual se encontram as demandas judiciais em curso dos cidadãos e organizações, de modo a legitimar e contribuir para as lutas sociais destes.

Pois bem. A partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, homofobia e transfobia foram criminalizados de maneira específica e sistêmica, ainda que por meios judiciais excepcionais e não por meios legislativos. O plenário do STF, seguindo os argumentos apontados pelo ministro relator do caso, Celso de Mello, compreendeu que a homofobia e a transfobia se enquadravam no conceito de racismo, já tipificado especialmente como crime de ódio. Os ministros, portanto, estenderam o entendimento de racismo existente, compreendendo, com base na jurisprudência do próprio tribunal, sobretudo na HC nᵒ 82. 424/RS, em que atos anti-semitas foram enquadrados na lei anti-racismo, e em princípios constitucionais, tais como a vedação da discriminação, a isonomia e a proteção da dignidade humana, que racismo envolve a ideologia de que existe a superioridade de um grupo em desfavor de outro. Dessa forma, a comunidade LGBTQIA+ se encontraria em uma posição social inferior em relação à parcela da população heterossexual e cisgênera, devido à perseguição histórica e constante daquele grupo.

Nota-se, dessa maneira, que o Poder Judiciário desencadeou uma abertura do espaço dos possíveis para englobar atos degrantes e preconceituosos que ainda não haviam sido descritos objetivamente. Também é perceptível a realização da historização das normas constitucionais a fim de abarcar questões sociais que, à época da constituinte, não possuíam espaço ou força para serem de fato tipificados, mas cuja essencialidade sempre esteve presente nos artigos da Constituição; nessa situação, portanto, há a evolução posteriori do direito para abarcar um tipo específico de crime de ódio cuja a vedação foi a priori concebida pela essência da Constituição de 1988.

Resta, desse modo, discutir as repercussões da decisão em questão, nos meios sociais e jurídicos. Uma das principais características do ambiente judicial e da norma efetiva, de acordo com Bourdieu, é a sua racionalidade; nela, está englobada o potencial de universalização e neutralização da norma, que, basicamente, consistem em seu potencial de se fazer valer em caráter universal e de maneira objetiva. Assim, a primeira grande repercussão da decisão judicial em destaque foi, precisamente, o enquadramento de atos homofóbicos e transfóbicos como crimes raciais, o que lhes conferiu uma maior proteção judicial e repreensão penal. Nessa perspectiva, tais crimes passaram a ser combatidos mais severamente, o que ocasionou a redução destes nos anos que seguiram à decisão.

Em uma segunda análise, nota-se que a criminalização da homofobia por vias judiciais teve consequências estruturais mais profundas e abrangentes, atuando não apenas no combate das violências físicas, mas também das simbólicas. A discussão de tal questão nos âmbitos da Suprema Corte despertou um interesse nacional, como se é de esperar, pelo tema, o que fez com que homofobia e a transfobia passassem a ser discutidas mais abertamente nos meios públicos e políticos. Em um nível estratégico e instrumental, decisão do STF trouxe legitimidade e reconhecimento às lutas contra a discriminação da comunidade LGBTQIA+, pavimentando o caminho para que tal luta continuasse seu processo de expansão no futuro, sempre em busca de assegurar os direitos do grupo e combater as injustiças contra ele proferidas. Já em um nível cultural e constituitivo, a decisão do tribunal trouxe uma visibilidade fundamental à causa LGBTQIA+, expondo de maneira aberta e explícita as perseguições sofridas pela comunidade no Brasil e suas consequências gravíssimas e promovendo a interiorização do direito ao defender a negação da discriminação e incentivar a igualdade. A criminalização da homofobia contribui para construir uma barreira contra as humilhações e as exclusões sociais provocadas contra a comunidade em questão e, ao mesmo tempo, edificou um palanque, onde essas vozes que, por tanto tempo, foram ignoradas, puderam finalmente conquistar um espaço legítimo para se defenderem.

Em resumo, têm-se que ADO nᵒ 26 foi um marco brilhante para a democracia brasileira, à medida que ajudou a amenizar conflitos sociais graves e abriu espaço para que grupos marginalizados buscassem pelo reconhecimento de seus direitos, agindo contra posturas majoritárias e anticonstitucionais, e um exemplo de como o ativismo judicial pode atuar como ferramenta potente a favor da mobilização e das lutas sociais.


Nome: Isabela Maria Valente Capato

R.A: 221221468

Primeiro ano de Direito - período matutino

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