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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A Criminalização da Homofobia no panorama contemporâneo

        No dia 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a mora do Congresso Nacional, pleiteada, com eficácia geral e efeito vinculante, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, a qual criminaliza a homofobia contra os integrantes da comunidade LGBTQIA+ que possuem seus direitos fundamentais transgredidos pela discriminação perniciosa e pelos discursos de ódio. Nesse sentido, os Ministros do STF acordaram com a disposição relatada por Celso de Mello em enquadrar, de modo equiparado, a homofobia e a transfobia como tipo penal previsto na Lei do Racismo (Lei 7716/89). Dado o exposto, é notório fomentar essa discussão nos tribunais, tendo em vista a conjuntura nacional na qual o chefe de Estado, eleito pela vontade majoritária em 2018, incita o ódio e a aversão às demandas sociais não só por meio da contravenção às garantias fundamentais imanentes ao escopo constitucional, mas também através do cerceamento da liberdade individual da comunidade LGBTQIA+, negando, em sua gênese, a existência de seus representantes.

            Nesse diapasão, cabe mencionar que, de acordo com o voto da Ministra Carmen Lúcia, a omissão legislativa corrobora a inércia do legislador brasileiro e, consequentemente, seu hiato em protagonizar atuação tutelar do grupo diariamente vulnerável à estigmatização, à coerção física e moral e, por fim, à violência de índole homotransfóbica. Logo, haja visto o postulado no relatório do Ministro Celso de Mello, urge enquadrar os crimes de homofobia e transfobia na premissa ontológica-constitucional do racismo.

            No entanto, antes de vincular o caráter deliberativo da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 às abstrações sociológicas do Direito, cabe analisar o contexto subserviente ao julgamento relatado por Celso de Mello. Sendo assim, o Mandado de Injunção 4733, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), é respaldado pela premente indispensabilidade de criminalizar as ofensas atentatórias ao grupo LGBTQIA+, tendo em vista sua ressonância desde o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006, o qual teve Jair Bolsonaro como assíduo opositor. Em suma, o requerimento da impetrante, compreendido pelo adiamento do julgamento do mandado, foi concedido para ser arbitrado concomitantemente à ADO 26.

        A princípio, a investigação principiológica da criminalização da homofobia é permeada por embates dicotômicos nas esferas argumentativas. Entretanto, a título de elucidação do “espaço dos possíveis” pontuado por Bourdieu, é mister traçar um parâmetro comparativo entre o voto proferido pela União e a proposta defendida pelo Ministro Relator Celso de Mello. Desse modo, de acordo com o Governo Federal e antagônico ao relato do representante do Supremo Tribunal Federal, o writ supracitado é incabível: “a parte impetrante não pretende assegurar o exercício de um direito previsto na Constituição, mas objetiva um regramento específico, uma tipicidade especial para condutas de homofobia e transfobia” (...) “não há qualquer comando constitucional que exija tipificação específica para a homofobia e transfobia”. Já Celso de Mello reitera a urgência do mandado de injunção, haja visto sua finalidade de ser um artifício à ausência de uma norma regulamentadora vinculada ao exercício de direitos e liberdades individuais: “obter a tipificação penal específica de qualquer comportamento qualificado como homofóbico ou transfóbico”. Portanto, a premissa de Bourdieu é consolidada pelo conflito entre agentes e instituições sob a égide de um viés antagônico, consolidando o campo jurídico anômico de atuação dos tribunais.

            Do mesmo modo, Pierre Bourdieu preconiza a concepção de “historicização das normas” na esfera jurídica, tendo em vista que a máxima em pauta corrobora a adequação do ordenamento às demandas sociais contemporâneas. Diante dessa perspectiva, é imprescindível salientar como a progressiva adaptação do aparato jurídico legitima a averbação de tutela dos direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+, os quais foram atentados pela deletéria violência de viés homofóbico. No âmbito histórico, cabe reiterar que, desde a 10a Classificação Internacional de Doenças (CID), a transexualidade, lamentavelmente, era patologizada e rotulada como transtorno psiquiátrico. No entanto, felizmente, a concretude da “historicização das normais” está explícita não só na celebração do Ministério de Direitos Humanos em retirar a transexualidade do rol taxativo da lista de distúrbios mentais, mas também no progresso evolutivo do Direito, por meio do ordenamento do STF, em dignificar as garantias fundamentais democráticas dos integrantes LGBTQIA+, os quais não devem ser restritos do direito à igualdade de tratamento perante orientação sexual ou identidade de gênero. Logo, cabe enfatizar o enunciado proferido pela Ministra Rosa Weber: “Nessa linha, muitas vezes uma efetiva igualdade substantiva de proteção jurídica de grupos vulneráveis demanda atuação positiva do legislador, superando qualquer concepção meramente formal de igualdade, de modo a eliminar os obstáculos - físicos, econômicos, sociais ou culturais -, que impedem a sua concretização.”

            Ainda sobre a “historicização das normas”, salienta-se, sumariamente, a necessidade de aplicabilidade da mutação constitucional no tocante à percepção social sobre o conceito de racismo. Nesse ínterim, de acordo com Luis Roberto Barroso na íntegra do acórdão do STF, a ausência de contemplação textual, na Lei de Racismo, da punição dos crimes de homofobia tornou-se inadmissível na conjuntura atual, urgindo prever a mutação constitucional com o intuito de dar escopo à mitigação da discriminação e da importunação de pessoas LGBTQIA+, pois, segundo o ministro: “A mutação constitucional é um mecanismo de modificação informal da Constituição, que permite a transformação do sentido e do alcance das suas normas, sem que se opere, no entanto, qualquer alteração do seu texto. Ela pode decorrer de uma nova percepção do Direito, quando se modificarem os valores de determinada sociedade. Afinal, a ideia do bem e do justo varia com o tempo.”

            Além disso, Garapon aborda acerca do “ativismo judicial” e da imprescindibilidade da discussão, nos tribunais, sobre a temática supracitada, tornando o Judiciário um agente nevrálgico e protagonista em, atipicamente, reverter as lacunas e a mora do Legislativo, o qual, por latente omissão e negligência, é um inerte intermediário em traduzir as demandas sociais nas instâncias dos Poderes constitucionais. Sob essa óptica, a prostração letárgica do Legislativo e, consequentemente, o amplitude das funções atuantes do Judiciário simbolizam o condicionamento da “magistratura do sujeito” transcrita por Garapon. Assim, cabe ao Magistrado tutelar a proteção dos indivíduos marginalizados pela coercitiva estigmatização homofóbica, atendendo as demandas sociais inerentes ao panorama contemporâneo.

            Entretanto, apesar da imperativa atuação dos magistrados em ofertar amparo aos grupos vulneráveis, ainda há um ceticismo vinculado à credibilidade das deliberações do Judiciário, depreciando o papel da instância mencionada em assegurar os direitos fundamentais previamente negligenciados pelo segregacionismo. A título de elucidação, cabe pontuar a perniciosa fala de Jair Messias Bolsonaro sobre a ADO 26: “A decisão do Supremo, com todo o respeito que tenho aos ministros, foi completamente equivocada. (...) Prejudica o próprio homossexual, porque se o dono de um empresa for contratá-lo, vai pensar duas vezes em fazer isso já que se fizer uma piada isso pode ser levado para a Justiça".

            Nesse viés, ressalta-se que a judicialização, de acordo com McCann, deve ser convertida em prol da “mobilização do Direito”, dando escopo à salvaguarda e à defesa das contingências sociais. Desse modo, instrumentalizar o papel do STF é consolidar a oferta de estratégias de ação e, consequentemente, proteção dos indivíduos sujeitos à lesiva homofobia imanente na realidade atual. No entanto, é mister efetuar a conversão da ilusória óptica autoritária e prepotente do Judiciário em uma perspectiva tutelar e favorável aos ensejos sociais. Logo, de acordo com o ministro Luiz Fux, é necessária “uma atuação mais expansiva do Poder Judiciário em prol da garantia de valores constitucionais pode ser, assim, parte da solução para problemas político-morais e sociais de alta relevância.”.

            Portanto, dado o exposto anteriormente, cabe propor uma reflexão no que concerne a criminalização da homofobia enquadrada no conceito ontológico-constitucional do racismo e pressuposta na ADO 26. Assim, de acordo com o Ministro Relator Celso de Mello: “A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, (...) discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.” Tendo em vista o enunciado proferido pelo Relator, a religião, na premissa da criminalização da homofobia, é equivocadamente utilizada como artifício que desumaniza a existência dos integrantes da comunidade LGBTQIA+, tornando-se, lamentavelmente, fundamento basilar de argumentos homofóbicos preconizados por representantes religiosos. Em suma, a liberdade religiosa – ao invés de incitar o amor fraternal entre suas figuras simbólicas – é manipulada por sujeitos perversos que possuem o explícito intuito de exortar a violência contra grupos sociais marginalizados.


Nome: Maria Yumi Buzinelli Inaba 

1° ano Direito - Matutino

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