O direito de todos começa quando a interseccionalidade sobrevalece a universalidade ou a neutralização.
A discussão sobre homofobia cada vez mais se apresenta como uma pauta que não deve ser negligenciada, essencialmente, devido a todos os direitos violados dos indivíduos da comunidade LGBTQIA+ quando sujeitos às condutas desrespeitosas por uma parcela conservadora da sociedade que se baseiam em um habitus patriarcal, o qual influencia as condutas preconceituosas de boa parte do corpo social. É diante desse cenário que a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 busca discutir sobre a criminalização da homofobia, questão primordial para inibir atitudes preconceituosas e discriminatórias, tão lesivas aos direitos e liberdades fundamentais. É importante destacar a princípio, que a comunidade LGBTQIA +, caracteriza-se por pela união de pessoas e grupos sociais distintos, mas unidos por um ponto em comum: a absoluta vulnerabilidade agravada por práticas injustas e atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais.
Com isso, o que se postula mediante a ADO 26, é a busca por respostas devido à omissão do legislativo ao relegar a um segundo plano pautas relacionadas à criminalização da homofobia, o que contribuiu para que indivíduos da comunidade LGBTQIA+ continuassem sujeitos aos inúmeros preconceitos presentes na sociedade. Em virtude disso, é que se preconiza a ideia de que a homofobia e transfobia sejam colocadas no conceito ontológico-constitucional de racismo, buscando enquadrá-las na ordem constitucional de criminalizar o racismo constante do art. 5º, inc. XLII, da CF/88, e também que seja fixada a responsabilidade civil do Estado Brasileiro.
Primeiramente, ao se pensar nos espaços dos possíveis preconizado por Bourdieu, entende-se os temas de homofobia e da discriminação são de constantes discussão dentro do campo jurídico como os projetos de lei Projeto de Lei do Senado – PLS Nº 101 de 2014, que altera o Código de Processo Penal; a PL Nº 5576/2013, acrescenta dispositivo ao art. 61; assim com intensos debates no campo do Legislativo Federal, por meio, por exemplo, do Projeto de Lei nº 5.003/01, aprovado em 2006 na Câmara dos Deputados, e que atualmente tramita no Senado Federal sob o nº 122/06. Além do mais, encontra-se dentro desse mesmo campo, a tipificação da punição de todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Entretanto, é importante ressaltar, que embora exista inúmeros projetos referentes a criminalização da homofobia, a morosidade para torná-los procedentes frustra o que está preconizado no art. 5º, inciso XLI, da Constituição, que ordena a punição de “qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, ou seja, a incriminação de todas as formas de violência homofóbica e transfóbica.
E aqui surge um ponto importante, pois há um conflito expresso dentro do espaço dos possíveis, tendo em vista que há de um lado aqueles que acreditam que o racismo, compreendido em sua dimensão social, “projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+)”; e do outro, a ideia de que o racismo está estritamente relacionado ao conceito de raça. Nesse sentido, ao buscar enquadrar o crime contra a comunidade LGBTQIA+ ao crime de racismo, pode-se aduzir acerca da historização da norma, uma vez que a lei estará em conformidade com as mudanças sociais e com isso apta para surtir efeitos condizentes com o momento presente. Ademais, não é possível aduzir acerca da universalização e neutralização da norma, haja vista que a comunidade aqui mencionada não está no mesmo patamar de igualdade preconizada pela lei, e ao racionalizar a norma, faz com que não exista a interseccionalidade do direito capaz de compreender todas as questões intrínsecas ao reconhecimento da criminalização da homofobia dentro do que se entende por racismo, contribuindo, assim, para uma discussão rasa acerca do que foi proposto pela ADO 26.
Nessa mesma linha de raciocínio, ao mencionar sobre o papel do judiciário perante a omissão do legislativo, existe uma linha tênue do que ao buscar compreender se a presente discussão advém de uma situação expressa que busca o direito por algum grupo social ou do famigerado “ativismo judicial” prejulgado por muitos.
Diante disso, pode-se observar a manifestação de ambas ideias, primeiramente, devido à representação do Partido Popular socialista como requerente, que movimenta o campo social para levantar pautas de interesse sociais capazes de chegar ao judiciário, como a busca de obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta; a garantia do direito fundamental à liberdade, pois o não reconhecimento implica negação à população LGBTQIA+ de realizar atos que não prejudicam terceiros e que não são proibidos pela lei; e a violação do direito fundamental à igualdade; em segundo lugar, o ativismo judicial aparece como correspondente a essa movimentação, haja vista que a sociedade busca por essa judicialização, ou seja, não é algo que se manifesta sozinho.
Nesse âmbito, a magistratura do sujeito ganha notoriedade, tendo em vista o maior controle do juiz, a interiorização do direito e a tutelarização, que são alguns pressupostos para a garantia da liberdade. Ressaltando que a busca pela tutelarização dos direitos fundamentais apresenta-se desde a igualdade, a liberdade, a vida, até a dignidade da pessoa humana, entre outros. Com isso, a justiça, para Garapon, aparece com o intuito de apaziguar e molestar o indivíduo sofredor moderno, tornando-se uma tarefa política essencial, com base na máxima “o direito transforma-se na moral por ausência”, ou seja, na falta de políticas públicas ou dos representantes do legislativo, existe amparo em outros campos do direito, como o STF, o qual aparece na modernidade como o principal, dentro do campo jurídico, entendido como único campo apto a trazer respostas aos atos discriminatórios cada vez mais disseminado pela parcela conservadora.
Ademais, dentro desse contexto e de todas as questões postas até então, entende-se que existe um aspecto de antecipação no julgado, em virtude de alguns aspectos: primeiro, a ADI 4.277, julgada em 2011, que aduz sobre o reconhecimento de direitos na união homoafetiva, já apresenta um forte debate acerca do respeito à comunidade LGBTQIA+ essencialmente, relacionado aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, inciso IV), e da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade (art. 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica, os quais violam direitos de indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária e alvos de críticas do conservadorismo social; em segundo lugar, ao fato de ser uma pauta levantada em inúmeros projetos apresentados ao legislativo, assim como pela urgência de se tratar no momento atual de violação dos Direitos Humanos.
A existência de antecipação, enseja os argumentos de Ingeborg Maus, uma vez que “quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta insistência moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social”, ou seja, existe uma questão intrínseca que envolve o poder de decisão, que neste caso, a justiça se coloca como apta, que pode, em momentos semelhantes a este utilizar de maneira deturpada o poder de decisão. Fechando essa ideia, embora existam controvérsias acerca da atuação do judiciário em relação às questões levantadas por movimentos sociais, denominado pelo poder contramajoritário, é inviável falar sobre ameaça à democracia, mesmo havendo um deslocamento da agenda do país do legislativo para o Judiciário. Isso decorre da judicialização ou do ativismo judicial, mencionado acima, característicos da vontade popular; e do fundamento normativo, que, fundamenta a concretude da lei; e por último, há a autocontenção, que garante a não aplicação da Constituição em casos que não estejam no âmbito de incidência do judiciário.
Outrossim, a mobilização do direito, que encontra-se permeada por todas as questões supracitadas, deve ser entendida como “as ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca da realização de seus interesses ou valores”. Essa questão decorre devido ao atual contexto social, o qual “exige” cada vez mais que os indivíduos exerçam sua cidadania não apenas no momento do voto, mas de maneira contínua, uma forma de se conectar à vida cívica e mobilizar o direito com intuito de engendrar uma consciência política e fortalecimento da democracia. Então, fica claro, que o direito é mobilizado pelos cidadãos, por grupos e movimentos em busca de acabar com a sociedade patriarcal, elitista, machista, homofóbica que por muito tempo passou ilesa.
Segundo Marc Galanter, “os precedentes legais construídos judicialmente influenciam não apenas os termos das relações, mas também toda a formulação de demandas particulares, para intensificar disputas e até mesmo negociá-las”, em outras palavras, o fato de existir uma gama de discussões acerca de direitos sociais, por exemplo, contribui para que questões futuras tenham um embasamento capaz de ajudar em decisões importante, como no caso da ADO 26, que sucedeu a ADPF 132 e ADI 4.277, a qual conseguiu um debate mais sólido e concreto devido o resultado de uma mobilização feita anteriormente. Esse é um fator essencial para entender o movimento dos tribunais em raramente amenizar conflitos políticos, uma vez que eles são constantes, e frequentemente encorajar ou criar novos litígios sobre questões públicas, como no caso da presente discussão sobre criminalização da homofobia.
Nessa perspectiva, pode-se compreender que dentro de uma sociedade plural, mesmo que um tipo de comportamento seja minoritário, ou seja, distante do padrão conservador, ao fazer parte de uma cultura como um direito fundamental, ele se torna um parâmetro essencial para detectar condutas intoleráveis, por exemplo, o desrespeito e discriminação com a união homoafetiva. Com isso o nível de poder constitutivo da autoridade judicial “diz respeito aos modos pelos quais as práticas de construção jurídica dos tribunais são “constitutivas” de vida cultural”.
Portanto, fica evidente, que a criminalização da homofobia é uma prerrogativa importante de ser discutida não por meio da universalização do aparato normativo, mas por meio da interseccionalidade, a qual é capaz de compreender as diversas vertentes que permeiam as questões sociais, como no presente caso, em que reconhecer os direito fundamentais não é suficiente para resolver toda discriminação envolta da comunidade LGBTQIA+, ou seja, é preciso entender os problemas estruturais intrínsecos à sociedade, os quais contribuíram para que a ADO 26 fosse levada em discussão. Desse modo, criminalizar a homofobia em conformidade com o conceito ontológico-constitucional de racismo, é um grande passo para o campo social.
Natália Lima da Silva
Turno: Matutino, 1º ano de Direito.
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