A ADO 26 e a
criminalização da homofobia
Saymon
de Oliveira Justo 1º Direito Noturno.
A ADO 26 (Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão), julgada pelo Supremo Tribunal Federal em
13/06/2019 trata da criminalização da homofobia. Provocado pelo Partido Popular
Socialista, o Supremo julgou procedente a ação proposta pelo PPS e equiparou a
homofobia a outros crimes como xenofobia e racismo. O acordão, de relatoria do
Ministro Celso de Mello, reconhece a “mora
inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação
legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os
incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal
aos integrantes do grupo LGBTI +”. Diz ainda o referido acordão que até que
venha legislação própria do Congresso Nacional que criminalize práticas
homofóbicas e transfóbicas, tais práticas “ajustam-se,
por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de
incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989 (...)”.
Na própria ADO vislumbramos alguns
dos conflitos presentes no litígio. Entre os vários amicus curiae que figuram na ação percebemos organizações ligadas
ao movimento LGBTQIA+, como o “Grupo Gay da Bahia”, a “ABGLT - Associação de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, o “GADVS – Grupo de
Advogados pela Diversidade Sexual” e também organizações ligadas às religiões,
como a “ANAJURE - Associação Nacional de Juristas Evangélicos”, a “COBIM -
Convenção Brasileira das Igrejas Evangélicas Irmãos Menonitas”, entre outros. Aliás,
a própria argumentação do relator ao defender a procedência da demanda do
Partido Popular Socialista explicita esse conflito quando diz que “A repressão penal à prática da
homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade
religiosa (...) desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio,
assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a
hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou
de sua identidade de gênero”.
Refletindo sobre a presente ADO sob a
perspectiva de “espaço dos possíveis” de Pierre Bourdieu, a decisão do Supremo
Tribunal Federal promove um “alargamento” do espaço dos possíveis dentro das
possibilidades da própria Constituição Federal e de acordo com as demandas
colocadas pelas mudanças no corpo social, ou seja, promove também uma historicização da Norma Constitucional.
A Seção II da Constituição Federal, que trata da especificidade e atribuições
do Supremo Tribunal na organização do Estado brasileiro, deixa claro seu papel
de tribunal de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, ao agir sob
provocação de um ente autorizado para tal no próprio texto constitucional (no
caso um partido político com representação no Congresso Nacional) e de acordo
com as prerrogativas do Artigo 102 da Constituição Federal, que autorizam o
referido Tribunal a “processar e julgar, originariamente: (...)
a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou
estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal”, percebemos que
o Supremo não extrapolou os limites da Constituição Federal, apenas agiu dentro
do chamado “espaço dos possíveis”.
Quanto
às manifestações de “universalização/neutralização”,
conceitos esses também abordados por Pierre Bourdieu, a própria argumentação
implícita na decisão dos Ministros, de que o Brasil é um Estado laico e que ao
mesmo tempo em que deve respeitar toda e qualquer manifestação religiosa, ele
mesmo, o Estado nacional, não pode pautar sua legislação no interesse dessa ou
daquela fé religiosa, demonstra o caráter de universalização/neutralização da
decisão. Ao argumentar que nenhuma manifestação religiosa pode incitar o ódio
ou a violência contra pessoas “em
razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”,
o que o Supremo Tribunal está dizendo é que a lei é neutra e universal, não
cabendo exceções a nenhuma religião ou a qualquer outro grupo político,
cultural, social...
Apesar de já existir dispositivo
constitucional versando sobre a discriminação de forma genérica, como o Artigo
5º inciso XLI que diz que “a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”
e de existir também as punições específicas para crimes de forma geral no
Código Penal, podemos compreender a ADO 26 como uma historicização da norma em relação às demandas dos novos tempos. A
comunidade LGBTQIA+, tradicionalmente alvo de preconceitos, agressões e muitas
vezes tendo suas expressões de amor restringida nos espaços públicos, nos
últimos anos, em razão de sua luta, vem ganhando espaço nas ruas, nas artes, no
marketing das empresas... Com isso, segue-se também uma intensificação dos atos
de agressão físicos e verbais de forma mais aberta. Nesse contexto, o
entendimento da ADO 26, que equipara a homofobia ao racismo, cria novos
mecanismos e possibilidades de combater as manifestações desse tipo de
preconceito de forma mais concreta e dentro das possibilidades da Constituição
Federal.
Quanto as frequentes críticas de
“ativismo judicial”, ou seja, de que o Judiciário estaria tomando para si
prerrogativas do Poder Legislativo, isso parece não se justificar. A própria
Constituição Federal, como citamos anteriormente, permite ao Supremo Tribunal
Federal agir quando provocado e julgar atos os quais o Legislativo se mostrou
omisso. Além disso, a ADO 26 não criminaliza ato novo, mas tão somente
explicita e especifica crimes já tipificados na Constituição Federal e no
Código Penal no intuito de instigar o poder público a proteger uma população
vulnerável específica e permitir a criação de novos mecanismos de proteção.
O que percebemos no referido julgado
é o que Antoine Garapon denomina de “magistratura
do sujeito”, ou seja, uma população quase completamente apartada da
proteção efetiva do Estado se vê na necessidade de mobilizar o judiciário como
única forma possível de defender seus direitos e em muitas ocasiões a própria
vida. Apesar da legislação geral, tanto constitucional como
infraconstitucional, que define o que é crime e quais as penalidades, essa
legislação se mostra insuficiente para proteger na prática a população
LGBTQIA+. Nesse sentido, ao ser provocado por setores legítimos da sociedade, o
Supremo Tribunal Federal, dentro das possibilidades do texto constitucional,
equipara a homofobia ao racismo e dessa forma possibilita uma maior
possibilidade da tutela dos direitos fundamentais da população LGBTQIA+.
A referida ADO não apresenta ameaça
alguma para a democracia, uma vez que já foi largamente demonstrado que além de
a decisão encontrar abrigo na Constituição Federal, essa mesma Constituição
coloca os limites de ação do Supremo Tribunal Federal, que no presente caso,
atua tão somente dentro das atribuições que lhes foram dadas pelo Poder Constituinte
Originário. Aliás, atua por conta da omissão do Poder Legislativo. Nesse
sentido, a ADO 26 tão somente ampara um direito de característica mais geral
tutelado pela Constituição, mas que na prática não alcança a população em
questão.
Assim, ao percebermos diversos atores
da sociedade civil, como o propositor da ação, no caso o Partido Popular
Socialista e os Amicus Curiae, que
figuram na ADO, o que fica explícito é a mobilização do direito para um
aprofundamento da democracia. Ou seja, uma vez que o texto constitucional
genérico não consegue dar amparo efetivo às demandas da população LGBTQIA+, a
equiparação da homofobia ao crime de racismo, a criminalização específica da
homofobia, transcende as possibilidades dos chamados direitos de primeira
dimensão e permitem uma defesa mais efetiva dessa população, um efetivo
aprofundamento da democracia.
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