O Supremo Tribunal Federal votou em plenário a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão número 26, a qual tinha por intuito criminalizar a violência pautada na orientação sexual, conhecida como homofobia. O Brasil, país evidentemente preconceituoso, conservador, discriminatório, faz sofrer muito a população LGBTQIA+. Pessoas com orientação sexual divergente do habitus heteronormativo todos os dias nas ruas brasileiras são agredidas física ou verbalmente por não seguirem a sexualidade tida pelo conservadorismo como ideal, todos os dias pessoas gays, lésbicas, transexuais, morrem por apenas existirem, e até a data da ADO a conduta violenta e assassina de parte da população não era considerada como crime. Tal cenário é alterado após a decisão do STF, pois essa determinou que houvesse consideração do motivo que levou a violência a ser cometida; a agressão movida pela intolerância em relação a sexualidade do outro, se tornou crime de fato, proporcionando a comunidade LGBTQIA+, uma segurança um pouco maior para habitar o território brasileiro.
Tendo em vista o caráter reacionário presente na sociedade brasileira, a resposta negativa a decisão proferida pela corte foi notória, uma vez que alegaram a desnecessidade da decisão já que a Constituição Federal prevê em seu artigo 5° caput que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”, dessa forma, pautando-se nesse artigo, alegaram que a igualdade de tratamento já é garantida pela Lei Maior do país, sendo irrelevante a procedência da ação por parte do Supremo Tribunal e, somado a isso, alegaram que não havia omissão legislativa acerca do tema, uma vez que havia sido pleiteado o debate da questão em Congresso Nacional, mas esse somente não tinha se concretizado ainda. Sendo assim, a decisão do judiciário estaria extrapolando o escopo de sua ação e invadindo assunto que seria de caráter legislativo, configurando o ativismo judicial.
No entanto, tais argumentos se mostram infundados, pois em observância a máxima aristotélica, a qual diz que “devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”, somente o exposto no caput do artigo 5° da Constituição Federal não é o suficiente para garantir segurança à comunidade LGBTQIA+, uma vez que eles se encontram em condição desigual dentro da sociedade e essa por sua vez, deve ser levada em conta a fim de promover além da igualdade formal prevista na legislação, uma igualdade material concretizada, de fato, no plano real. O que mesmo antes da decisão proferida pela Suprema Corte já se encontrava dentro do espaço dos possíveis, tendo em vista que é assegurado também constitucionalmente pelo inciso XLI do artigo 5°, que a lei punirá qualquer discriminação, além disso, é assegurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos em seu artigo 13, parágrafo 5, que a lei deve proibir qualquer “apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.”. Com isso em mente, é possível notar que a criminalização da homofobia constituía o espaço dos possíveis do campo jurídico, pois, de certa forma já estava prevista em legislação, já que de acordo com os diplomas legais é vedada a discriminação e o ódio voltado a grupos minoritários.
Além de constituir o espaço dos possíveis do campo jurídico a pauta da criminalização da homofobia também estava no campo social, de modo que é por meio da mobilização desse que tal litígio chega ao direito, o judiciário foi incitado a agir pelo partido popular socialista, com a participação de outras parcelas sociais como o grupo gay da Bahia, os quais reivindicavam uma atitude por parte da justiça, dado que mesmo após realizarem diversas provocações ao legislativo foram ignorados. Em síntese, o Supremo Tribunal Federal só foi provocado a agir mediante omissão do Congresso Nacional, pois, sendo a prática da homofobia assunto urgente a ser tratado, uma vez que a população LGBTQIA+ sofre todos os dias nas ruas, não era viável que continuassem esperando alguma resposta dos representantes. Sendo assim, era necessário que fosse elaborado com urgência algum mecanismo para que conseguissem se proteger da violência, e desamparados pelo legislativo, buscam o judiciário, deixando claro o caráter de magistratura do sujeito, uma vez que em face da crise de representação política, busca-se a justiça para a efetivação de direitos.
Todavia, mesmo após a efetivação da homofobia como crime, a violência contra pessoas de sexualidade diversa a heteronormativa não se finda, ela ainda se encontra presente em todos os cantos do país. No entanto, é importante ressalvar de modo a lançar luz sobre o assunto, que com a atribuição do título de crime a homofobia a Suprema Corte passa a modular a ação de pessoas que cometam esse tipo de violência, pois essas após a decisão sabem que ao tomar atitude discriminatória estarão sujeitas a sanção prevista em lei, o que pode algumas vezes não coibir a prática agressiva, mas permite que ela seja punida quando realizada. Com isso, o tribunal começa a inclusive a possibilitar uma mudança na cultura em geral, pois, como atitudes homofóbicas passaram a ser, a partir da decisão, punidas, de certa forma elas começam a ser evitadas pela sociedade, o que a longo prazo implicaria em uma sociedade menos discriminatória. Ademais, com a decisão, até mesmo a visão cotidiana sobre o assunto é alterada, uma vez que a partir da declaração procedente do pedido, o que antes poderia ser considerado por muitos como liberdade de expressão após a ADO 26 é crime.
Outrossim, a decisão do STF muda a realidade para o campo social, a luta da comunidade LGBTQIA+ agora passa a ser não mais para conseguir o direito de existir, mas sim para efetivar no plano real o direito adquirido através do tribunal, atentar contra a possibilidade de existência de pessoas que possuem orientação sexual diversa a heterossexual, é crime, agredir pessoas integrantes dessa comunidade de forma real ou simbólica se tornou proibido a partir de 2019, desse modo, é claro que a após a sentença a luta não se esgota, ela continua viva no campo social para que esses direitos estejam postos, de fato, na sociedade e até mesmo para que sejam ampliados.
Nesse contexto, a atitude tomada pelo Supremo Tribunal Federal provocado pelo campo social, corresponde a uma universalização das normas, tendo em vista que o direito já concedido a uma parte da população é através da interpretação ampliado. Já era no direito brasileiro tipificado o crime de racismo e no entendimento do STF a homofobia caminha na mesma esteira, “racismo que não se resume a aspectos estritamente fenotípicos, constitui manifestação de poder que, ao buscar justificação na desigualdade, objetiva viabilizar a dominação do grupo majoritário sobre integrantes de grupos vulneráveis”, tendo por base a definição da corte a homofobia também incorreria em racismo e, por isso, é possível que tal movimento de universalização seja realizado. Além do caráter de universalização há também uma historicização da norma, pois a Suprema Corte utilizou-se de uma norma restritiva e de certo modo antiga, para realizar uma interpretação de acordo com o período contemporâneo e com as demandas sociais atuais ligadas as pautas da comunidade em questão.
Através da ADO 26 inclusive, ideais democráticos foram consagrados a comunidade LGBTQIA+, com a proibição da homofobia foi aberto à essa comunidade a capacidade de existir livremente e a participação efetiva na democracia, uma vez que a efetivação de direitos fundamentais de minorias está intrinsecamente ligada ao conceito democrático, pois essa não pode se configurar como uma tirania da maioria, renegando direitos de grupos sub-representados politicamente, como havia ocorrido até a decisão do tribunal, o conceito de democracia está ligado também a questões de efetivação de direitos à toda população.
Em suma, a sentença proferida pelo Supremo Tribunal Federal, foi uma resposta a provocação realizada através do campo social, pelo partido popular socialista e por grupos como grupo gay da Bahia e associação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (ABGLT), que após serem ignorados muitos anos pelo Congresso Nacional, recorreram ao judiciário a fim de conseguirem ao menos um respaldo jurídico para que combatessem a violência tanto física quanto simbólica sofrida. A decisão da corte, é uma forma de vincular a ação popular e de fato transformar a cultura violenta voltada a comunidade LGBTQIA+. A população intolerante não pode mais agredir integrantes da comunidade, o que foi denominado por McCann como caráter constitutivo dos tribunais, não há mais limbo legislativo capaz de justificar tal violência a qual visa consagrar o habitus heterossexual como único legítimo. Por fim, é notável o avanço civilizatório e democrático promovido pelo campo social e efetivado pelo tribunal, a partir da historicização e universalização das normas, as quais levaram a concessão de direitos fundamentais a essa comunidade que sempre careceu de proteção.
Marina Cassaro
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