Atenção: a história do seguinte texto possui natureza totalmente fictícia e foi inspirada pela leitura e interpretação da obra ‘’Discurso do Método’’, de René Descartes, da obra ‘’Novum Organun’’, de Francis Bacon, e do filme ‘’O Ponto de Mutação’’, dirigido por Bernt Amadeus Capra.
A questão era que não fazia sentido. Não havia sentido. Ana tinha vinte e três anos. Ela era saudável, se exercitava regularmente, consultava uma nutricionista. Nunca tinha fumado ou bebido em toda a sua vida. Não havia histórico de doenças na família. Ela usava casaco em dias frios e não saía de casa quando estava chovendo. Ela nunca tinha ficado resfriada, nem mesmo na infância. Aquela havia sido a primeira vez que Ana ficara doente. A primeira e a última.
Ana tinha vinte e três anos. Vinte três anos como ela.
Ela que fumava ocasionalmente e bebia mais do que ocasionalmente. Ela que não
se exercitava e mal comia entre uma sessão de estudos e outra. Ela que queria
se formar para recomendar aos outros aquilo que ela mesma não seguia. Ana tinha
o seu rosto, a sua idade, a sua genética. Ana tinha muito mais. Ana tinha o
juízo, e os sonhos e a bondade. E, ainda assim, era ela quem estava ali. Não
Ana.
Não fazia sentido. Mas a fazia sentir. Até demais.
Por isso, ela foi atrás das respostas. Ela se trancou em
um quarto, não tão grande, para que a solidão não entrasse, mas não tão
pequeno, para que as dúvidas não a sufocassem. Um quarto limpo, estéril,
insensível. Ela fechou as janelas, para que não pudesse sentir o calor do vento
em seu rosto e começou a ler. Ler era encontrar, seus professores diziam.
Encontrar respostas, conhecimento, soluções. Ler era encontrar, Ana teria dito.
Ela queria ser professora. Ela queria salvar o mundo, mas sabia que isso era
muito complicado. Por isso, Ana se contentava em ajudar aqueles que estavam ao
seu alcance. Ana tinha muito mais, veja bem.
Ela revirou os livros de medicina, pesquisou artigos, leu
e releu pesquisas. Ela esmiuçou cada sistema do corpo humano, cada órgão, cada
tecido. Categorizou as doenças, procurou entender cada fator que poderia levar
à contaminação e cada fator que poderia evitar uma cura. Dias perderam-se em
semanas, semanas em meses, até que, por fim, ela obteve as respostas que
buscava. Ela entendeu o que havia dado errado, como a doença que levara Ana
tinha surgido, como tinha a infectado e destruído a harmonia delicada do seu organismo pouco a pouco, feito uma infestação de cupins sobre uma antiga casa de madeira.
Só que algumas dúvidas não sumiram. Os ‘’por ques’’, eles
permaneceram, escalando a sua garganta, atando suas mãos, prendendo seus pés ao
chão daquele quarto. Então, ela continuou a procurar.
Da ciência, ela partiu para a física, da física para a
biologia, da biologia para a química, para a história, para a geografia. Ela
visitou cada área do conhecimento, como em uma viajante em uma jornada repleta
de escalas, mas com um destino só e incerto. E a cada resposta que ela obtinha,
mais dúvidas surgiam, multiplicando-se como as células de um tumor.
De repente, o problema não estava mais em Ana, estava no
mundo. O mundo não fazia sentido algum. A medicina nunca estivera tão avançada
e, ainda assim, pessoas morram todos os dias, não por conta de doenças, mas por
conta de complicações, algo incontrolável e incurável, apenas evitável, mas,
que, ainda assim, não era evitado por ninguém. O mundo atravessava a quarta
revolução industrial, as empresas jamais estiveram tão bem equipadas
tecnologicamente, e, ainda assim, elas continuavam a extrair, e a minerar, e a
destruir o próprio ambiente que lhes fornecia a energia para que o mercado
continuasse funcionando. Era para a sociedade estar testemunhando o ápice da
proliferação das lutas sociais, a era da liberdade de expressão e do
compartilhamento de conhecimento, mas, ao invés disso, eles conviviam com
mentiras que se proliferavam como um vírus, opiniões formadas com base em nada
e partilhadas como se fossem tudo e causas que eram diminuídas e polidas até
poderem se encaixar na tela de fundo de uma propaganda política bonita e vazia.
A comida era o suficiente para alimentar a todos, mas nem todos conseguiam
comer o mínimo para sobreviver. Guerras nasciam e cresciam, ao contrário das
crianças que morriam por causa delas. Regras eram debatidas, e formuladas, e positivadas,
só para serem quebradas a todo instante, como estacas no rumo de uma avalanche.
Estavam todos doentes, todos eles, desfalecendo sem ao menos perceber.
Mas devia haver uma razão, um agente etiológico, uma justificativa maior que
desse sentido a tudo que acontecia. Ela precisava de uma maneira de
compreender, de aceitar. Então, ela continuou a procurar.
Primeiro, ela tentou a religião. Foi reconfortante, mas
não o bastante. Então, ela passou para a filosofia. Filosofia, a arte da busca
pelo saber. Era sua grande aposta, a sua última esperança de silenciar as
dúvidas de uma vez por todas. E o quão frustrante foi se dar conta de que as respostas
que lá estavam carregavam em seu ventre novas perguntas, que nasceram na cabeça
dela com choros estridentes.
De repente, o problema não estava mais no mundo. Estava
em tudo. No existir, no conhecer, no viver. O sistema era falho, as
justificativas eram inúteis e eles eram seres perdidos, famintos e teimosos,
que tentavam apagar marcas em folhas de papel já muito amassadas. Dias
perdiam-se em semanas, semanas em meses, meses em anos, em todos os lugares, a
todo tempo. E tudo que permanecia eram as dúvidas, infecciosas pequenas criaturas berrantes, parasitas em seu ser.
O conhecimento era repicado e suas fatias eram isoladas,
jogadas ao espaço como corpos celestiais. Elas estavam tão distantes umas das
outras que era fácil se esquecer que faziam parte da mesma galáxia. Eles
estavam tão distantes um dos outros que era fácil se esquecer que faziam parte
do mesmo mundo. O mundo estava tão distante dela que era fácil se esquecer que ela fazia parte dele. Mundo tornou-se abstrato. E em sua abstracidade, tornou-se
compreensível do modo mais dolorido. O luto dela inchou até o tamanho de um
balão com um raio de seis e mil e trezentos quilômetros.
Ela
leu e releu, leu e releu, porque não podia parar, não até se livrar do choro das larvas. Por fim, ela retornou a Descartes. Alguns diziam que o problema
começou em Descartes. Ela concordava e discordava. O problema existia antes de
Descartes, sempre existiria. Descartes somente tentara solucioná-lo, amenizá-lo
com pitadas de lógica e fé, e, como todos os outros que decidiram se arriscar,
havia conquistado sucesso por um instante e falhado dali adiante. Dessa vez,
ela viajou pelas páginas e pousou em trechos que não haviam estado em suas
escalas antes. Ela viu Descartes com outros olhos, olhos mais pesados e secos.
Descartes
vira o mundo como uma máquina, o homem como um ser racional, e a existência
como uma linha de pensamento. Ela conseguia entender, trancada naquele quarto,
distante no espaço. Mas, dessa vez, ela viu além das respostas que ele tentara
oferecer. Ela viu as dúvidas que Descartes carregara. Ela notou a voracidade
por trás das teorias, a necessidade de compreender, de achar uma justificativa
maior. Ela viu Descartes como algo a mais do que um ser racional e, naquela
linha de pensamento, ela tocou toda uma existência que se encontrava com a sua.
De Descartes, ela partiu para Bacon, de Bacon para Kant,
de Kant para Weber, depois Marx, depois ela revisitou Platão, Sócrates e
Aristóteles. E, em cada um deles, ela encontrou as dúvidas. Ela encontrou uma
constante, talvez a única que tinha sentido. Na dúvida, ela encontrou a
humanidade, e na humanidade, ela encontrou a dúvida. Ela aceitou, após dias,
semanas, meses e anos, que talvez aquela seria uma viagem interminável. Que as
repostas estariam sempre um passo a frente. Ou, talvez, um passo a dentro.
Ana queria salvar o mundo, mas sabia que isso era
complicado demais. Ana tinha mais. E ela, ela queria mais. Perguntar mais,
procurar mais, encontrar mais. E o único jeito de testar era experimentar. O
único jeito de tocar a certeza era tentando senti-la.
Rose fechou os livros, levantou-se do chão e abriu as
janelas.
O vento da manhã bateu quente contra o seu rosto.
Curso de
Direito – Campus de Franca – período matutino
Disciplina:
Sociologia
Nome:
Isabela Maria Valente Capato
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