Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
Morte e vida severina, João Cabral de Melo Neto
A falta de acesso à terra e à moradia é um dos sintomas mais expressivos da exclusão socioeconômica capitalista. Embora a Constituição Federal brasileira esteja alicerçada na dignidade da pessoa humana- que inclui o acesso a moradia- e sejamos signatários de uma série de documentos que apontam na mesma direção, na prática- como ocorreu no Pinheirinho- a propriedade privada (concentrada nas mãos de poucos) se sobrepõe a vida de milhares de pessoas, deixando claro que o Estado e o Direito servem aqueles que detêm o capital.
Vinte e um de janeiro de 2012 é mais um sábado comum no Pinheirinho, terreno localizado na zona Sul de São José dos Campos que estivera abandonado por 12 anos e só a partir de 2004, com a ocupação pelos sem-teto, adquiriu vida, desenvolvendo-se em um complexo de relações afetivas, políticas e jurídicas autônomas. Nesse dia corriqueiro, as 1700 famílias que abrigavam o bairro nem imaginavam que teriam o sono e a vida interrompidos na madrugada que se aproximava. O morador David Washington Furtado estava a poucas horas de ser baleado pela arma da polícia enquanto protegia sua filha pequena e sua companheira; Antonio Dutra Santana de 71 anos seria atropelado durante a operação de guerra de desocupação e viria a falecer; Ivo Teles dos Santos também perderia a vida vítima de espancamento policial; mulheres seriam submetidas a uma das faces mais cruéis da violência de gênero: o abuso sexual e os sobreviventes ao massacre seriam dominados pelo completo desamparo material e emocional.
Por detrás desse cenário chocante havia várias arbitrariedades jurídicas e o interesse do mega especulador Naji Nahas que ficou conhecido, inicialmente, por estar envolvido com esquemas fraudulentos na bolsa de valores. Nahas é o suposto proprietário da região onde o Pinheirinho foi construído, terreno abandonado desde a falência da empresa Selecta SA, em 1990. Logo nos primeiros anos de ocupação, a Massa Falida entrou com pedido de reintegração de posse, o qual foi negado duas vezes pelo TRF. Porém, contrariando a decisão federal e violando a regra de que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas” (CPC, artigo 471), a juíza Márcia Faria decidiu ressuscitar uma liminar de reintegração. Tanto Márcia quando o juiz Capez- designado pelo desembargador Ivan Sartori para dirigir o massacre da desocupação- afirmaram que a justiça agiu de acordo com a Constituição e colocaram a culpa da situação anterior e posterior a desocupação ora no Estado (como se o Judiciário não fizesse parte do Estado), ora nos próprios moradores. Para além da questão moral, ética e de empatia, as posturas dos juízes se aproximam da perspectiva hegeliana do Direito.
Para Hegel a lei é o império da liberdade e a expressão da vontade universal. Dessa forma, uma vez que a nossa Constituição garante o direito à propriedade, aqueles que não têm acesso a ela, não o tem por culpa própria. Essa visão, pois, não considera as relações materiais, a prática e tampouco que muitos princípios elencados normativamente são um ‘’dever ser’’, isto é, ideais que o Estado almeja alcançar e deverá prover esforços para tal. Marx, no entanto- captando a discrepância entre o direito material e formal- critica essa visão idealizada do direito de Hegel. O sistema normativo longe de ser a liberdade universal é, na verdade, um instrumento de dominação política e social de uma classe sobre outra e a liberdade que vigora é, portanto, a liberdade de mercado e de propriedade.
Desde antes da reintegração de posse propriamente, a tese marxista fica evidente. Apesar de a constituição brasileira prever a dignidade da pessoa humana e a moradia como fundamentais, ao analisar a vida material, observa-se que São José dos Campos conta com um déficit habitacional de 30 mil moradias, daí a formação de comunidades habitacionais como o Pinheirinho. Os dias de desocupação e a ação policial também exemplificam as afirmações de Marx. No plano das idéias, a polícia serve para proteger a sociedade, porém, a população do Pinheirinho foi massacrada por quem, em tese, deveria protegê-la. Ainda sobre o cenário de guerra estabelecido entre moradores e policiais, Marx afirma em Crítica a filosofia do Direito de Hegel: ‘’cada classe, no preciso momento em que inicia a luta contra a classe superior, fica envolvida numa luta contra a classe inferior’’. Assim, o Pinheirinho representa a materialização das contradições do sistema capitalista, uma afronta aos interesses da classe hegemônica como a propriedade privada e a especulação; os policiais, por sua vez, incorporaram de tal forma a ideologia dominante que embora estejam mais próximos- em termos de classe social- dos moradores do Pinheirinho, defenderam os interesses da burguesia, isto é, da classe superior.
O caso Pinheirinho é o retrato trágico de mil e setecentas famílias obrigadas ao êxodo, de pessoas sendo espancadas e mortas como se nada fossem em prol da manutenção dos status quo e dos interesses de indivíduos imorais, tanto do ponto de vista legal quanto ético. O que ocorreu no Pinheirinho, porém, não é exceção, as atrocidades cometidas durante a desocupação são constantes na vida daqueles que tem o acesso a moradia negado e resistem pela via da ocupação. Tais paradigmas, marcados pela truculência e desumanidade estatal frente as contradições do sistema socioeconômico vigente, esclarecem a afirmação de Marx de que o Estado burguês e todos seus instrumentos- como o direito- servem a burguesia e que enquanto esse Estado persistir o máximo que as classes subjugadas conseguem são direitos pontuais, dentre os quais muitos permanecem e permanecerão apenas no plano formal, pois concretizá-los contraria os interesses do capital. Isso significa que a emancipação humana, como assinala Drummond nos versos de Elegia 1938, permanecerá distante, no horizonte.
Juliana Inácio- Direito noturno
''Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras''.
Drummond, Sentimento do mundo
Juliana Inácio- Direito noturno
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