Vive-se sob o paradigma de que a
divisão dos poderes, ou seja, a atribuição a órgãos distintos e especializados
das funções estatais de legislar, administrar e julgar é a forma ideal de garantir a democracia e o
respeito aos direitos fundamentais. No entanto, contrariando essa expectativa, atualmente, o Supremo Tribunal
Federal tem desempenhado um papel ativo na vida institucional brasileira,
consolidando a chamada “judicialização”. Essa centralidade do judiciário na
tomada de decisões sobre algumas da grandes questões nacionais gera polêmicas e
muitas dúvidas: a legitimidade democrática fica comprometida? O Judiciário
possui capacidade institucional para decidir acerca de determinadas matérias? A
divisão dos poderes é ignorada?
A fluidez da fronteira entre
política e justiça no mundo contemporâneo, marcada pela transferência da
decisão de questões políticas e sociais importantes das tradicionais instâncias
políticas (Congresso Nacional e o Poder Executivo) para o Poder Judiciário
torna-se nítida nas discussões sobre o reconhecimento como entidade familiar da
união das pessoas de mesmo sexo. Para alguns juristas, o texto constitucional é
taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos
diversos. No entanto, outra corrente sustenta que o reconhecimento dos direitos
oriundos de uniões homoafetivas encontra fundamento em todos os dispositivos
constitucionais que estabelecem a proteção dos direitos fundamentais, no
princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio da igualdade e da
não-discriminação, na proteção à segurança jurídica, bem como na noção de que família é caracterizada pelo amor,
comunhão e identidade.
Segundo Barroso, a judicialização
decorre do próprio modelo de Constituição analítica
e do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no
Brasil.Isso equivale a afirmar que a judicialização não decorre da vontade do
judiciário, mas sim do constituinte. Essa concepção justifica o papel central
do judiciário na questão do reconhecimento da união homoafetiva:o judiciário
foi provocado a se manifestar, ele decidiu porque era o que lhe cabia fazer,
sem alternativa. Nesse ínterim, retoma-se à corrente que defende uma
interpretação não reducionista do conceito de família, legitimando o papel do
Judiciário na decisão acerca do reconhecimento da união homoafetiva: o objetivo
constitucional é promover o bem de todos.
Nessa perspectiva, alguns
juristas, entre eles Barroso, distinguem o conceito de judicialização de ativismo
judicial. Enquanto o primeiro conceito decorre da própria constituição e
permite que as discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas sob
a forma de ações judiciais, ativando a cidadania; o último termo expressa, com
uma conotação pejorativa, a postura do intérprete, um modo proativo e expansivo
de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas
normas, para ir além do legislador ordinário. Barroso entende que no contexto de retração do Poder
Legislativo, do distanciamento entre classe política e sociedade civil potencializa-se
a judicialização, pois com o avanço do neoliberalismo e o afrouxamento das
estruturas de direitos sociais, as demandas da sociedade foram canalizadas para o
Judiciário, que tornou-se então o “muro das lamentações do mundo moderno”.
Nessa óptica, percebemos que as demandas da minoria homossexual brasileira é
uma expressão desse processo: a crise de representatividade, legitimidade e
funcionalidade do legislativo prejudicou à
satisfação dessas necessidades, logo deslocou-se para o Judiciário a
competência de impedir o sufocamento, o desprezo, a discriminação desse grupo.
Podemos afirmar que a
centralidade do papel do judiciário na questão do reconhecimento da união
homossexual é uma usurpação do poder, já que criaria uma espécie de
“Constituição Paralela”, trazendo um risco à democracia? Ou, de forma oposta,
isso permite uma concretização democrática e consolidação das garantias
fundamentais, pois representa uma adaptação da visão normativa às necessidades
do tempo, viabilizando o “modo de pensar do possível”, uma “teoria
constitucional da tolerância”?. O Ministro Joaquim Barbosa parece inclinar-se
para segunda tendência ao sustentar que,
pelo descompasso entre os mundos dos fatos e o universo do Direito, cabe ao
Judiciário resolver as lacunas entre direitos e sociedade. Nisso se insere a
ideia de Konrad Hesse: “o que não aparece de forma clara como conteúdo da
Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da
‘realidade’ de cuja ordenação se trata”.
Apesar das dúvidas que evolvem esse processo,
das críticas e elogias à “politização da Justiça” fica claro, conforme aponta
Barroso, que o Direito sempre terá uma vertente política no que tange à busca
da justiça, da segurança, do bem-estar social. Porém, é perceptível também, que
Direito não é ou, não deveria ser Política em relação à submissão da vontade de
quem está no poder, não deveria tender ao
facciocismo, à valorização de uma
maioria em detrimento das minorias. Em ambos os casos, a decisão pelo
Judiciário acerca do reconhecimento da união homoafetiva nos trouxe lições e ganhos importantes, ao derrubar o argumento
da “dificuldade contramajoritária” desse órgão de poder, expressando que o
Judiciário representa também a população sim, e, ao defender seus direitos,
contribui para a construção democrática e preservação da cidadania.
Em síntese, apesar das
controvérsias que envolvem a “politização da Justiça” ou a “Judicialização da
Política”, é inegável que esse processo possui uma força crescente no Brasil, é
indubitável, também, que dele pode resultar ganhos democráticos, porém, o mais
importante é perceber que isso se liga a uma questão mais ampla: como o Direito legitimamente conseguirá
acompanhar as mudanças da sociedade e as consequências resultantes disso? Ou
como outrora Boaventura de Souza e Santos já salientava: “enfrentamos problemas
modernos para os quais não há soluções modernas”. Barroso se mostra sensível a esse
problemática e sustenta que “precisamos de reforma política; e essa não pode
ser feita por juízes”. Fica a questão: quem tem o papel legítimo de realizar a
reforma política? quem tem o poder de buscar as soluções modernas? .
Victória Afonso Pastori
1º Ano- Direito Noturno
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