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quinta-feira, 24 de junho de 2021

                                              


                  Dentadura

   Mona perguntou a Anita o que havia na pia do banheiro. A outra respondeu que não sabia, e que não interromperia o jogo de damas para conferir. Zélia sugeriu que a prima se levantasse da cama da avó e fosse verificar, mas mal recebeu resposta: aquela cabecinha de cinco anos recém-completados seguiu a inquirir, com sinônimos e hipérbatos, acerca do objeto sobre a pia.                                                               Anita, sem abandonar os quadrinhos do tabuleiro, entortou um pouco a cabeça, torceu a coluna, fez força com os braços e visualizou-o: não era uma escova de dentes, nem um tubo de pasta. Era um pouco parecido com o aparelho ortodôntico que o irmão usava, mas não muito. Parecia também um brinquedo que ela tivera, usado para colocar na boca e ficar como um vampiro. Mas isso importava pouco: a avó não brincava. O objeto sobre a pia era pequeno demais para ajudar na locomoção da idosa, era uno e não caberia no par de olhos que ela tinha. Não era comida de modo nenhum, porque estava no banheiro. Por fim, a menina levantou-se, e pôde fazê-lo em silêncio pois cada articulação dela tinha somente cinco anos e meio.                                                                                                                                                   Mona deu um grito e sentou-se na cama. Anita e Zélia teriam se esquecido dos vários meses de castigo que apareceram quando as três fizeram do andador um cavalinho? Tudo poderia ser resolvido pelo celular. "Coisa branca de idoso", "O quê uma avó tem na pia?", "Coisa que uma avó usa" trouxeram resultados interessantes, como chumaços de algodão, cotonetes, remédios e batons. Nenhum deles parecia aquilo que elas, agora todas na cama, diante do eletrônico, visualizavam.                                       Zélia disse às duas que pegaria nas mãos o objeto misterioso, e comunicou logo que Deus abençoaria, porque ela já tinha feito a Primeira Comunhão. Diante de mais protestos, a menina, já dentro do banheiro, perguntou se elas não lembravam do dia em que Anita jurara que o mundo inteiro era amarelo só porque estava com problema no fígado, ou do dia em que tia Márcia sonhara com um ladrão pouco ante de ter o carro roubado. Na vida, não bastava ver. Era preciso, ela aprendera ao longo dos sete longuíssimos anos de sua vida, pegar, cheirar, experimentar, perguntar pra mãe, falar com a catequista,  ler um livro grandão da escola, consultar os sonhos da cabeça da gente (mas só os menos malucos), tudo junto e misturado, para adquirir alguma inteligência de alguma coisa.                                                        A conversa virou briga, porque nem Anita, nem Mona, aceitaram as baboseiras de comunhão e de longos anos. Quando as duas pularam da cama para alcançar a terceira, porém, a avó entrou no banheiro. A senhora resmungava, pois as caixas dos remédios mudavam demais, e, daquele jeito, ela logo teria que aprender umas letras pra não morrer de infarto. Diante dos três pares de olhinhos perplexos, vovó pigarreou, encaixou o objeto de mistério na boca, deu duas mordidinhas de confirmação, saiu do cômodo para o quarto e enfiou na boca um pedaço de carne que o filho deixara sobre um  prato na cômoda. À noite, já na própria cama, as três não dormiram: onde será que a avó guardava o comedor de chocolate? E o de amendoim? E o de bolachas? Será que, quando elas ficassem velhas. também teriam que comer só carne e coisas moles? 

    Maria Paula Aleixo Golrks - Primeiro período, Direito matutino. 





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