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segunda-feira, 9 de março de 2020

Se saber é poder, que o poder seja comum a todos.


  Com a Primeira Guerra Mundial, a flama da excitação acesa pela inovação técnica proporcionada pela ciência, que parecia incessantemente progressiva durante a chamada Belle Époque, foi apagada pelo medo e pela insegurança em relação à produção científica: armas, bombas, destruição; fome, feridas, mortes. Em sequência, o costume de adaptar a ciência e o conhecimento à produção, intensificado durante o século XIX com a sua onda cientificista e mais visível entre 1914 e 1917, e a despeito do trauma do pós guerra, foi o responsável pelo cada vez maior desinteresse por muitas linhas de pensamento e de conhecimento dentro e fora da academia, desvalorização essa latente até os dias de hoje. Contudo, essa invalidação de muitas formas de conhecimento é, mais do que produtiva, um entrave para o real avanço da ciência e para a devido exercício da razão humana, de acordo com as ideias dos filósofos René Descartes e Francis Bacon, de maneira que o conhecimento deixe de ser uma ferramenta de libertação e de revolução científica e ideológica e passe a ser uma que retroalimenta a destruição.
  Pode-se observar, em primeira análise, como ainda hoje a ciência é um instrumento de compreensão da realidade material desse tempo a fim de apenas aprimorá-la à produção dos seres humanos, vide o desenvolvimento da medicina (antibióticos, vacinas) para maior longevidade e das tecnologias digitais de ampla aplicação na produção capitalista. Esse histórico viés utilitarista sobre todas as ações humanas dentro de tais condições materiais faz com que toda a razão seja regida por fins ideais sem que os meios para que eles sejam atingidos sejam sequer notados. O filósofo francês René Descartes aponta, entretanto, a nocividade dessa dinâmica em sua obra Discurso do Método: muitos conhecimentos podem ser adquiridos durante processos negligenciados; no final de muitos estudos, nada se conclui e, ao contrário do que se pensa, o erro e a dúvida não são os únicos produtos, mas a descoberta da própria ignorância faz-se o mais significante proveito.
  Ademais, tal caráter utilitarista sobre a vida faz com que algumas formas de conhecimento sobreponham-se a outras, de acordo com os critérios das academias ou com as disparidades culturais de diferentes comunidades. O projeto de generalização do ensino técnico no período de ensino médio no Brasil é um exemplo de como isso acontece: alegando “inutilidade” de algumas disciplinas no currículo do ensino e maior preparo para o mercado de trabalho com esse projeto, os idealizadores dele impedem diretamente que os discentes façam uso de seu próprio juízo, o que, para o pensador inglês Francis Bacon, é fundamental para o exercício pleno da razão; ainda, o supracitado francês garante o valor único de cada forma de conhecimento e como elas podem enriquecer estudos, ainda que sejam falsas, visto que, assim, aquele que exercita sua mente evita ser enganado por elas. Outrossim, é de suma importância considerar todas as formas de conhecimento válidas, pois as desproporções nas lógicas de diferentes povos, com culturas distintas, não devem ser encaradas como diametralmente opostas, mas concomitantes e horizontais, como também indica o sociólogo brasileiro Roque de Barros Laraia na obra Cultura.
  Hoje, é possível perceber como o saber científico e as informações tornaram-se mais difusos com a internet, tendo em vista o caráter global do meio técnico-científico-informacional na Era Digital. Contudo, da mesma maneira que as novas tecnologias podem proporcionar a democratização dos estudos e do conhecimento, ao passo que todos podem pesquisar e produzir conteúdo, elas são responsáveis pela cada vez maior mercantilização e personalização da ciência: a produção passou a seguir as leis de mercado e, de acordo com a procura, sua oferta é adaptável aos interesses empresariais e até mesmo pessoais. Assim, a propagação de informações má fundamentadas e de falsas ideias tem crescido exponencialmente, uma vez que, na era da pós-verdade, é crucial a reafirmação da pessoalidade de acordo com o que se consome, até no que tange a ciência, haja vista a as discussões sobre o formato do planeta Terra envolvendo muitos jovens em busca de coesão social, encontrada, por exemplo, no movimento terraplanista a despeito de inúmeras comprovações que evidenciam seu formato geoide. Esse é um exemplo de como o ego pode ser responsável pela fragilização das bases científicas; como apontara Descartes: “a reputação pode atrapalhar no processo de instrução”. Assim, conclui-se que a produção do conhecimento deve ser conjunta, como indica o filósofo, seja nos estudos em comunidade, seja na publicação dele, aliás, “juntos é possível ir mais longe do que em particular”.
  Desse modo, nota-se como a razão é suscetível às condições materiais humanas, as quais podem turvar a visão dos indivíduos enquanto pesquisadores da racionalidade, bem como afastá-los de conhecimentos significativos que só podem ser colhidos com o cuidado sobre o método e sobre a experiência, com todo o seu processo envolvido. Além disso, é importante reiterar a necessidade de compreensão sobre todas as formas de conhecimento, não obstante das particularidades culturais e do histórico caráter utilitário aplicado sobre quaisquer empreendimentos humanos, pois ela é fundamental para o pleno exercício da razão de acordo com o francês René Descartes e para o uso do próprio juízo de acordo com o inglês Francis Bacon. No mais, deve-se atentar ao fato de que as armadilhas do ego, inflado mais do que nunca na era da pós-verdade, carecem de combate, porque fragiliza a ciência e porque várias mentes em conjunto são mais poderosas do que uma sozinha, e, se saber é poder, que o poder seja comum a todos.

Luiz Gustavo Couto de Oliveira, 1º ano de Direito (noturno)

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