Sociólogo francês e grande pensador do
século XX, Pierre Bourdieu, em seu livro “O Poder Simbólico”, apresenta e
aborda a constituição do campo jurídico e a maneira pela qual as personalidades
jurídicas interpretam ou compreendem a estrutura do Direito. Nesse contexto, a
fim de elucidar a temática exibida e defendida pelo autor, é válido expor a
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, a qual possui conceitos
e abordagens de Bourdieu intrínsecos ao seu conteúdo. Tal ADPF, solicitada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, tem por objetivo impedir ou
reparar o dano ocasionado a um preceito fundamental. Segundo os requerentes,
“diversos órgãos investidos do ofício judicante – juízes e tribunais – vêm
extraindo do Código Penal, em detrimento da Constituição Federal, dos
princípios contidos nos textos mencionados, a proibição de se efetuar a
antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos”. Diante disso,
quais são os principais conceitos do autor francês relacionado com o julgado?
Em primeiro lugar, conforme exposto pelo
relator do processo, Marco Aurélio, “mostra-se inteiramente despropositado
veicular que o Supremo examinará, neste caso, a descriminalização do aborto,
especialmente porque, consoante se observará, existe distinção entre aborto e antecipação terapêutica do parto”. A
partir disso, nota-se que a veemência com o qual é diferenciado o aborto da
antecipação terapêutica revela que, em 2012, as discussões, especificamente,
acerca do “aborto de anencéfalos” estavam dentro do espaço dos possíveis, que,
segundo Pierre Bourdieu, limita a atuação e confere legitimidade ao poder
jurídico. Se, porventura, fosse tratado o assunto da descriminalização total do
aborto, naquele período, provavelmente o Judiciário se desprenderia da sua
demarcação de alcance, perdendo autenticidade para aplicar uma decisão.
Em segundo lugar, o relatório
apresentado pelo ministro e relator Marco Aurélio contém referências ao
“direito de dizer o direito” apresentado por Pierre. Em uma citação, é afirmado
que se torna recomendado o “imediato crivo
do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade (...)”, pois
“a unidade do Direito, sem mecanismo
próprio à uniformização interpretativa, afigura-se
simplesmente formal”. Essa citação revela a dimensão do campo jurídico que
é formada por relações, competições e referenciais de poder específicos. Como
existem diversas interpretações no ambiente do Direito, há a necessidade de
sobrepor uma à outra. No caso brasileiro, as maiores decisões são tomadas pelo
STF, que possui o poder dominante e regulador dos jogos de lutas encontrados no
campo jurídico.
Além disso, na defesa de sua posição, o ministro
supracitado afirma que “a questão posta neste processo – inconstitucionalidade
da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de
feto anencéfalo – não pode ser examinada
sob os influxos de orientações morais religiosas (...) para tornarem-se
aceitáveis no debate jurídico, os argumentos
provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas”. Diante
disso, a neutralização, conforme abordada por Bourdieu, caracteriza-se como
parte integrante do campo jurídico. Nesse sentido, o Direito não se torna
reflexo da vontade um grupo exclusivo da sociedade, mas se fundamenta na
própria razão vigente. Todavia, há de se afirmar que, embora a universalização,
isto é, o recurso sistemático que exprime uma certeza através de mecanismos
racionais esteja presente no campo jurídico, a neutralização, por vezes, apenas
se traveste de impessoalidade. Por esse motivo, “vê-se, assim, que, olvidada a
separação Estado-Igreja, implementou-se algo contrário ao texto constitucional.
A toda evidência, o fato discrepa da
postura de neutralidade que o Estado deve adotar quanto às questões religiosas.
Embora não signifique alusão a uma religião específica, ‘Deus seja louvado’
passa a mensagem clara de que o Estado ao menos apoia um leque de religiões”.
Não somente isso, mas “o preâmbulo da
atual Carta alude expressamente à religião cristã”.
O fato, simultaneamente, de Marco
Aurélio citar várias referências para basear seus argumentos demonstra a
autonomia relativa (ilusão da independência) do Direito revelada por Bourdieu,
haja vista que esse campo assimila referências de outros campos e da própria
sociedade, mostrando que as influências externas podem ser processadas pelos
agentes internos do âmbito jurídico. Assim, as discussões realizadas dentro do Poder Judiciário, além de estarem
embasadas no próprio arcabouço doutrinário, jurisprudencial e constitucional,
são motivadas pelo coletivo. No entanto, pelo princípio da irredutibilidade do
sociólogo francês, os fundamentos da razão próprios da área jurídica devem se
sobrepor sempre, pois o Direito não se reduz às convenções sociais. Por isso, o
ministro vai afirmar que “se alguns setores da sociedade reputam moralmente
reprovável a antecipação terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos,
relembro-lhes de que essa crença não pode conduzir à incriminação de eventual
conduta das mulheres que optarem em não levar a gravidez a termo. (...) Ações de cunho meramente imorais não
merecem a glosa do Direito Penal.”
Fica evidente, portanto, o vínculo entre
os conceitos de “O Poder Simbólico” e a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 54. O Poder Judiciário, nesse contexto, após toda a questão
apresentada, declarou procedente a “ação para declarar a inconstitucionalidade
da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é
conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal”,
explicitando seu poder simbólico para instituir em qual momento se inicia e
termina a vida. Tal capacidade se dá por meio do capital ou recurso simbólico
construído a partir de ferramentas racionais. Consequentemente, percebe-se a
importância e a eficácia que os operadores do Direito possuem, através do veredicto,
em introduzir mudanças e inovações no meio social. No entanto, as modificações
não são realizadas de maneira simples e rápida, mas são concebidas como produto
de uma intensa luta simbólica.
Leonardo de Oliveira Baroni - Direito (Noturno).
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