Boaventura Sousa Santos, em seu
estudo sobre o direito emancipatório, discorre sobre a ciência jurídica nas zonas
de contato. Primeiramente, o autor explica que “zonas de contato são campos sociais
em que diferentes mundos da vida normativos se encontram e defrontam.” (SANTOS,
2003, p.43) Nessas regiões, as lutas cosmopolitas são constantes,
principalmente devido às divergências culturais, sociais e jurídicas que são coagidas
à convivência. Boaventura se ocupa em seu texto, principalmente, das “diferentes
culturas jurídicas que se defrontam de modos altamente assimétricos” (Idem),
como, por exemplo, os povos indígenas que se envolvem em um conflito com a
cultura nacional predominante. É de suma importância evidenciar que, embora os
conflitos sejam constantes, as zonas de contato são “propícias às
experimentação e à inovação cultural e normativa.” (Idem, p. 44)
O embate
travado nas zonas de contato não é o direito pela igualdade, uma vez que tal
conceito é relativo de acordo com as culturas envolvidas, mas sim uma luta
pluralista pela igualdade transcultural, ou seja, intercultural. Nesta
igualdade insere-se a possibilidade da decisão dos grupos de preservarem-se em
relação ao outro, ou de misturarem formando uma cultura híbrida.
Ainda
tratando das diferenças nas zonas de contato, Boaventura cita o grande
contraste entre a legalidade demoliberal e a legalidade cosmopolita. Para ele,
a diferença está nítida nos quatro tipos de sociabilidade, dentre eles: a
violência, a coexistência, a convivialidade e a reconciliação. A violência
ocorre quando a cultura dominante assume o controle total da zona de contato,
suprimindo a cultura subalterna. A coexistência permite que diferentes culturas
se desenvolvam em um mesmo local, sendo as interpenetrações desincentivadas,
quando não proibidas. A convivialidade, que se relaciona com a reconciliação, é
a resolução dos conflitos do passando, visando a partilha da autoridade em um
momento futuro. Já a reconciliação, de acordo com Boaventura, “é o tipo da
sociabilidade baseada na justiça restauradora, no sanar de antigas ofensas e
agravos.” Ao contrário da convivialidade, Barbosa afirma que a reconciliação é
mais voltada para o passado do que para o futuro, fazendo com que tal característica
permita que os conflitos do poder passados venham a se repetir no futuro sob
outra máscara. “Quando se opta pela reconciliação, chega-se a um acordo voltado
para o passado e que, por meio de contrapartidas (monetárias ou outras), faz
algumas concessões ao saber indígena/tradicional sem deixar de confirmar os
interesses prevalecentes do conhecimento biotecnológico.” (Idem, p. 51)
Na prática,
é possível identificar diversas situações em que a reconciliação se fez presente.
Na África do Sul, por exemplo, a instauração de uma Comissão da Verdade e
Reconciliação após a solidificação da democracia não visa desprezar os efeitos
da lei da Anistia, mas apenas reparar os danos sofridos por seus cidadãos. O
país passou por uma experiência ditatorial entre os anos de 1948 e 1988, quando
o Partido Nacional impôs o regime do apartheid,
cada vez mais repressivo, segregando negros e brancos. Com a transição
democrática, o novo governo alegou ser necessária a concessão da anistia, “Mas
qualquer arranjo para anistia e indenizar, sem uma obrigação paralela de revelar
a natureza dos crimes perpetrados, teria graves implicações para a
reconciliação nacional de longo prazo.” (CINTRA, 2001, p. 7) Ao conceder-se a
anistia, as responsabilidades civil e criminal da pessoa ficaram extintas, não
podendo mais ser processada pelas vítimas: o Estado assumiu a responsabilidade
das reparações e assistências prestadas às vítimas. Buscou-se, então, a partir
da Comissão da Verdade e Reconciliação, determinar os abusos e crimes contra os
direitos humanos do regime anterior e, também, a reabilitação das vítimas e a
reparação da maioria dos danos sofridos. A instauração de tal comissão foi de
extrema importância para a consolidação da democracia, “a prioridade é a
consolidação de um governo democrático, capaz de promover os direitos humanos,
sobretudo numa situação como a da África do Sul, de transição pactuada, em que
o governo permanece dependente de muitas das antigas instituições.” (Idem, p.
10)
Além desse
exemplo, é possível citar a Austrália: em 2007, o Senado Federal da Austrália
em conjunto com o governo do Estado da Tasmânia demonstraram a intenção e
tomaram medidas para a criação de um Tribunal de Reparações, responsável pela
reconciliação com os povos Aborígines e Insulares do Estreito de Torres (ATSI),
que, no século 20, foram separados de suas famílias e comunidade em decorrência
de políticas do próprio Estado de remoção forçada. “Uma Comissão de Verdade e Reconciliação traz vários
benefícios, com audiências simultâneas em cada estado ou território, tendo como
comissários membros das comunidades indígenas e não-indígenas. Ela significará
um afastamento positivo dos modelos contenciosos até agora mal sucedidos. Além
disso, deve-se anexar um Programa de Reparações às Comissões de Verdade e
Reconciliação e conceder compensações de forma coerente, nas quantias
recomendadas pela Lei Tasmaniana e pela lei de Compensação.” (VIJEYARASA,
2007)
Analisando o
estudo de Boaventura e os exemplos supracitados, infere-se que as Comissões de
Verdade e Reconciliação são fundamentais para a equiparação de direitos nas
zonas de contato e concessão de reparação aos vitimados, seja por políticas
estatais ou de grupos dominantes. Ao longo de sua obra, o autor afirma que a
reconciliação é puramente voltada para o passado, porém não se pode negar que a
sua realização gera efeitos futuros, capazes de consolidar um sistema pacífico
nas zonas de contato envolvidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL.
Câmara dos Deputados. Consultoria Legislativa. Consultor: Antônio Octavio
Cintra. As Comissões de Verdade e Reconciliação: O caso da África do Sul. Fevereiro
de 2001. Disponível em: < http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2231/comissoes_verdade_cintra.pdf?sequence=1>
Data de acesso: 6 de novembro de 2012
SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser
emancipatório?. Revista Críticas de Ciências Sociais, 65, Maio
2003: 3-76.
VIJEYARASA,
Ramona. Verdade e reconciliação para as “gerações
roubadas”: revisitando a história da Austrália. Sur Revista Internacional
de Direitos Humanos, São Paulo, vol. 4, nº 7. 2007. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-64452007000200006&tlng=>
Data de acesso: 6 de novembro de 2012
GRUPO: diurno
Isabela Risso da Silva
Lívia Regina Gonçalves Sbroggio
Maria Cláudia Silva Cardin
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